quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

O Filósofo e a sua Sombra - O espinosismo no materialismo do século dezoito francês

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tese de doutoramento (parte)

Este ensaio é uma continuação da crítica de um pensamento que ambiciona a hegemonia de todo o pensar, seja valorizando determinadas ideias e excluindo outras, seja impondo uma ideologia – o neo-liberalismo – que se apresenta como uma visão geral do mundo, racional, realista, pragmática, não permitindo alternativas. Desde centros académicos de renome até aos media, desde os discursos de governantes até aos comentadores de serviço, desde os Tratados de alcance mundial até aos documentos que realmente orientam a atual União Europeia, há mais de três dezenas de anos que o mundo ocidental imperialista vem difundindo e impondo um consenso com tantos e tais poderosos meios que consigam desacreditar uma oposta visão do mundo e da vida mais racional, mais justa e mais humanista. Contudo, não conseguiram nem conseguirão, apesar da enorme desproporção de meios e de forças. É a própria via, isto é, a própria realidade, que vai minando a hegemonia absoluta e demonstrando a irracionalidade que esse consenso universal transporta. De facto, do que se trata é de uma ideologia, de uma modalidade de pensamento, que revela e veicula com clareza bastante os interesses de domínio de uma classe social. O que tem de ser feito e o que há suceder mais tarde ou mais cedo é a derrota deste consenso imposto pela força, pela chantagem e pela mentira. Não para substitui-lo por outro pensamento único, mas para converter a igualdade e a liberdade na condição básica do viver, no modo adequado e racional do Todo se exprimir através das suas partes.

É nestes termos inabituais e até insólitos para algumas correntes filosóficas contemporâneas que apresento em seguida uma exposição das ideias de Bento Espinosa da maneira como foram rececionadas e interpretadas por um abade filósofo do século dezoito, Dom Deschamps, e, em um outro ensaio que, espero, se seguirá, pelos filósofos materialistas das Luzes.

A atualidade do pensamento de Espinosa, filho de portugueses e que falava a nossa língua, só não é flagrante para o tal pensamento único imperialista. A sua influência foi porventura mais profunda e duradoira do que qualquer filósofo da Modernidade: verifica-se na filosofia inglesa – desde logo em J. Locke – percorreu toda variegada filosofia das Luzes, emergiu na filosofia alemã (incluindo escritores da envergadura de Goethe e de Schiller), com destaque para F.-W. Hegel, o qual, por sua vez, marcou profundamente K. Marx, e renovou-se no século passado com importantes estudos de G. Deleuze, entre outros.

Esta exposição constitui uma pequena parte da minha Tese de Doutoramento.  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dom Deschamps : o filósofo e a sua sombra

 

 

«Não é senão porque eu sou no fundo a verdade que ei-la desenvolvida, e não é senão porque os meus semelhantes são-no tanto como eu, que aqueles, entre eles, capazes de me ler e de me entender dirão depois de me haverem lido, e compreendido, é ela, a coisa é evidente

Introdução

 

    Léger-Marie Deschamps (1716-1774) foi um filósofo de origem francesa que interveio no movimento cultural das Luzes com excepcional originalidade. Era membro da ordem dos beneditinos. Na nossa tese de obtenção do grau de mestre, em 1997, explanamos com largueza bastante o percurso intelectual de dom Deschamps, membro de uma ordem regular poderosa ao tempo mas da qual não recebeu nunca quaisquer benesses. Viveu metade da sua vida numa minúscula e esquecida abadia da região de Poitiers, não muito distante do lugar onde nasceu René Descartes. Ficou obscuro pela mediocridade das funções que exerceu em plena província, pelo facto do seu sistema filosófico nunca ter sido publicado e, provavelmente, ficaria de qualquer maneira marginalizado pela singularidade extraordinariamente ousada do seu projecto. O estilo de redacção de dom Deschamps é bastante duro, muito longe da mestria e modernidade de um Rousseau ou de um Diderot. Apesar disso, lê-se hoje com menos dificuldade do que se lê o discurso do então célebre barão d’Holbach e, menos ainda, do que a generalidade dos escritos panfletários que abundantemente se publicavam na altura. A seguir à sua morte ficou rapidamente remetido ao esquecimento; contudo, não foi uma figura ignorada no seu tempo.

  Tendo procurado as luzes, permaneceu na sombra. No entanto, outros mais fizeram as sombras desse século e desse movimento reformador que uma interpretação unilateral classificou em bloco como utilitarista e anti-metafísico; mas foi certamente um movimento que se julgou a si mesmo iluminado por uma Razão transparente que anunciava uma Era de progressos ilimitados. Foi seguramente uma época de conflitos e contrastes, de intensas batalhas ideológicas que exprimiam também contraditórios interesses económicos e políticos que iriam confrontar-se violentamente na última década do século. Foi certamente um Movimento de sombras e contrastes, encruzilhadas e ciladas, debates semiclandestinos em salões privados, nos cafés mundanos, de campanhas persecutórias, de espiões e esbirros, de delatores e funcionários corruptos, de prisões sem culpa formada e deportações apoiadas em simples calúnias.

A expressão «sombras» que utilizamos é aqui largamente polissémica. Em primeiro lugar exprime a escassa divulgação e popularidade da obra de dom Deschamps (apenas publicou dois opúsculos que obtiveram um muito fraco acolhimento); em segundo lugar, exprime a posição ambivalente de Deschamps relativamente ao Movimento das Luzes (alguns contemporâneos tomaram-no simplesmente como um conservador); em terceiro lugar, exprime a presença disfarçada de Espinosa na elaboração do seu pensamento.

  Iremos demonstrar nesta dissertação que um beneditino, cuja obra foi descoberta somente um século depois, que criou uma seita de iluminados que pretendia rivalizar com os mações, teve uma intuição brilhante nos anos cinquenta. Munido dessa intuição atreveu-se a substituir, integrando e superando, todos os sistemas e todas as correntes de pensamento do seu tempo e, por meio de um projecto utópico surpreendente, atreveu-se a solucionar todos os problemas sociais e políticos de vez. Isto é, o sistema de dom Deschamps ambiciona resolver e completar os destinos da Filosofia e da História.

   Pretendeu, em primeiro lugar, fornecer ao conceito de Todo ou Totalidade, que é uma noção nuclear das filosofias, uma nova formulação, denunciando e resolvendo contradições em que outros filósofos, segundo ele, se enredavam. O termo tout, ou grand tout, era recorrente nas diversas correntes que compunham o Movimento das Luzes.

Com a chave de uma dialéctica insólita mas que poderia vir a ser inovadora, dom Deschamps desafiava os seus contemporâneos a admitir, por via rigorosamente lógica e até gramatical, uma ideia não antropomórfica de Deus, uma concepção naturalista que harmonizasse o homem com a natureza, em que a morte não fosse uma tragédia mas uma necessidade da ordem natural das coisas, de uma ordem que ignora todo o bem e todo o mal. Alcançada a Verdade, abria-se a possibilidade de uma existência individual e colectiva permanentemente feliz. Ou seja: se desejarmos optar por uma forma de existência radicalmente diferente – mais autêntica- necessitamos primeiramente de modificar a perspectiva pela qual encaramos o mundo e a vida; dessa nova perspectiva resulta uma outra atitude existencial. Este é conteúdo do seu sistema. Por isso o designou de A Verdade, ou o Verdadeiro Sistema. É um sistema eminentemente ético.

Em segundo lugar, atribuía, por conseguinte, a tudo que existe uma ordem, um acordo interno e imanente entre todos os seres, desde o homem a tudo mais, sem graus fixos de valor e de hierarquia. O homem é um modo de ser da natureza, uma parte do todo universal. A morte, por exemplo, não equivale ao nada absoluto ou ao grau zero da existência, mas àquilo que ele chama “o menos da vida”.

 Todas as coisas existem, entre o “mais” e o “menos”, como modificações internas de um Ser constituído por uma profunda contradição: é simultaneamente o todo material actual, positivo, perfeito e pleno de realidade física, movendo-se na duração temporal e no espaço, ou seja o universo ou natureza, e é o infinito, a eternidade, o indeterminado, o nada.

Um ser, substância ou todo, contraditório. Este é o núcleo duro do seu sistema. E porque o início explica o fim, o Autor move-se em círculos concêntricos. Os muitos cadernos insistem, repetem, regressam ao ponto de partida. Não se tratava de uma patológica obsessão, mas de esclarecimentos incansavelmente retomados em relação à matriz do sistema, a qual, a bem dizer, não sofreria modificações de relevo desde os anos iniciais em que foi elaborado. O Verdadeiro Sistema, assim denominado, foi a matriz, tudo o mais são registos de diálogos, textos que pretendia publicar para preparar a edição principal, explicações a ilustres hóspedes do seu amigo Marquês de Voyer, que residia nas proximidades da abadia de Montreuil-Bellay, correspondência... As dificuldades de recepção que encontrava nos seus interlocutores, obrigavam-no a repetir-se. Ele próprio queixa-se disso, e manifesta alguma arrogância intelectual. O que é evidente para ele, deveria sê-lo para todos os outros. A exposição, repetitiva, identifica-se, porém, com uma exposição didáctica, no sentido do mestre que ensina e ilumina, embora por vezes denuncie pouca paciência. Para nós, que expomos o seu sistema, é muito difícil evitarmos a repetição, a ameaça do movimento em círculos vai perseguir-nos seguramente.

  Que sistema filosófico é esse? É um sistema aparentemente niilista, relativista nos valores e manifestamente aberto à existência do Nada, que impressionou os seus interlocutores, construído sobre a fórmula contraditória de um Deus simultaneamente positivo e negativo, que parece ter sido bebido nas teologias negativas. No entanto, esse Deus é apenas o mesmo nome com que ele designa uma coisa bem diferente: a Natureza. Neste esforço julgava haver transcendido os conflitos das filosofias e das ideologias políticas, mostrando como ora se afastavam, ora se aproximavam mais daqueles princípios que solucionavam o enigma da Existência. Julgava ele estar na posse da única filosofia genuína e absolutamente metafísica, pois que a teologia cristã não a possuía afinal, nem os deísmos e ateísmos que a esta se opunham. Um sistema de todos os sistemas, um dispositivo inclassificável de uma supra-metafísica, de um meta-discurso.

Num século onde as metafísicas estavam sendo alvo de ataques, do desprezo ou do silêncio de determinadas elites, também ele não as defendeu, tal qual eram, dando-nos, porém, um sistema, um dos mais metafísicos que se conhece, sobre o ser e o não-ser, que parece propor um regresso às origens da filosofia ocidental (todavia, Hegel irá retomá-lo). Crítico das correntes que abandonavam a metafísica, crítico do sensualismo e do empirismo, mas inclusivamente dos mais importantes expoentes das filosofias materialistas do seu século, integrou a metafísica como um “momento” do seu Sistema, isto é não lhe concedeu o plano supremo. Encarar metafisicamente os seres era entendê-los na reunião de um Todo material; porém, o pensar não terminava aí.

Tentou superar as filosofias da natureza em voga no seu tempo. Fique claro que o termo «natureza» exprime aquilo que se quiser, ou aquilo que se descreve conforme um determinado ponto de vista. Não lidavam então, nem ainda lidamos nós, com um referente unívoco, objectivo, exterior, cuja realidade se refecte no pensamento. Encontrava-se em pleno desenvolvimento uma atitude e uma concepção que se caracterizava por separar o pensamento desse Objecto, tratando a natureza como a «Coisa» externa que se podia conhecer e manipular por meio da técnica, subordinando-a aos fins humanos. De modo muito claro dom Deschamps opunha-se a esta fractura e a esta dominação, colocando os homens mais ao serviço da natureza do que o seu contrário. Ou seja, a natureza humana coincidia com a Natureza, e tudo que desta nos apartasse significa infelicidade. A civilização, por conseguinte, era um mal necessário (Melhor dizendo: havia sido), que se deveria e poderia abolir bastando para tanto que os homens optassem. O campo era bem melhor, e um campesinato idealizado projectava-se como um ideal utópico. Uma espécie de ecologia  radical.

  Distinguiu na especulação filosófica dois andamentos: por um lado, a formulação do conceito de O Todo( Le Tout), a soma de tudo que é realidade sensível e natural, e, por outro, a formulação de um conceito que se apresenta como absolutamente contrário do primeiro: Tudo (Tout), que equivale ao Nada. Este desdobramento do pensar especulativo em dois momentos – tese/antítese- propõe-se como uma supra-metafísica verdadeiramente original e ousada. Estranha aos figurinos da época. Embora não o haja formulado assim, era como se o Autor ultrapassasse os limites da metafísica para se alcandorar a uma ontologia. Uma metafísica do Todo e uma ontologia terminal do Tudo.

 Crítico tanto das religiões reveladas como das doutrinas deístas e liberais, integrou todas as crenças, superando-as pela revelação de uma moral sem normas, de um Deus-Existência que equivale ao Nada, de uma Lei (natural) sem leis (humanas), de uma Felicidade gerada pela mais extrema igualdade. A Contradição do Ser conduzia à conclusão da mais cerrada Identidade. Um filósofo que se posicionava, de uma maneira extraordinariamente moderna, para além de todo o Bem e de todo o Mal.

  Um dos eixos desta dissertação é demonstrar que dom Deschamps foi profundamente tocado pelas ideias de Espinosa, muito embora sob a forma, então corrente, de um espinosismo esquartejado por citações de segunda e terceira mão, interpretado, contaminado pela sátira, pela calúnia, pelo silêncio temeroso. Não foi Descartes, Malebranche ou Leibniz, Rousseau, d’Holbach, Diderot, ou qualquer outro seu contemporâneo, que lhe permitiu a revelação, a intuição original, nem foi, muito menos, a escolástica dos teólogos. Confrontou-se com quase todos. Opôs-se também a Espinosa ou àquele espinosismo que circulava em França, mas foi do autor da expressão Deus sive natura, do criador da fórmula natura naturans/natura naturata, que ele mais se aproximou. Daí a razão do título que demos a esta dissertação: Dom Deschamps, o filósofo e a sua sombra. Quizémos sugerir, desde logo, a presença denegada, e, por isso, bem mais visível, do genial autor da ÉTICA, filho de judeus portugueses. Negou-o? Recusou-o? Sim, certamente, redigindo até uma importante refutação, mas outro tanto fez com todos os demais, e neste, em particular, o “filho” precisou de “matar o Pai”. E isto não apenas por causa dos perigos que resultavam necessariamente de um parentesco com Espinosa, porque, se assim fosse, não se compreenderia a ousadia do projecto revolucionário de Deschamps. A sua utopia social era bem mais ousada que o projecto político de Espinosa. A acusação de que foi alvo incomodava-o sobretudo por ser acusado de discípulo de um filósofo que ele considerava incongruente, inconsequente, e ser remetido ao mero estatuto de “seguidor”. Não o satisfazia, sobretudo, a falta de uma moral, ou de uma boa moral, em Espinosa, na opinião dele evidentemente. Tomava como correctas a acusação de “ateu” que dirigiam a Espinosa, como, de resto, parecia repudiar veementemente o “ateísmo” de d’Holbach. Porém, apresentou a sua própria teoria como o melhor e mais perfeito “ateísmo esclarecido”.

  Nesse tempo abundava uma literatura clandestina, circulavam panfletos e opúsculos sobre e contra o espinosismo, por vezes por meio de um hábil disfarce de concepções que se compreendiam, afinal, bem próximas de Espinosa. Na verdade, nem aqueles que atacavam Benedito, nem muitos daqueles que camufladamente o defendiam, conheceram realmente os textos do “príncipe dos filósofos”, como o qualificou G. Deleuze. Também o próprio Deschamps não se mostra leitor que dominasse todas as obras daquele. Talvez por isso, e porque Deschamps constrói uma dialéctica negativa, é que, julgamos nós, o emérito Professor André Robinet, de Poitiers, descura a influência de Espinosa no pensador beneditino de Poitou, como se pode ler no seu livro Dom Deschamps, le maître des maîtres du soupçon, aliás a melhor obra que se escreveu, paralelamente aos dois Colóquios que desde 1974 se realizaram, em um dos quais nós mesmos participámos (Léger-Marie Deschamps, un philosophe entre lumières et l’oubli”, Paris, L’Harmattan, 2001). Dessa comunicação, mantemos a tese, tal qual a defendemos nessa altura. O grande sistema pelo qual Deschamps se confrontou com as filosofias do seu tempo, o grande sistema contra o qual se confrontou, foi o sistema de Espinosa, ou melhor: aquilo que, em boa verdade, ele tomou injustamente como todo o sistema de Espinosa.

 

Pretendemos com esta dissertação não apenas trazer ao conhecimento um filósofo da envergadura de dom Deschamps, como, e principalmente, demonstrar que foi um dos mais importantes neo-espinosistas do século dezoito francês, senão o mais congruente e radical. Uma época crucial da civilização europeia, que o Movimento das Luzes marcou indelevelmente.

 

Esta dissertação é composta por duas partes: na primeira, expoe-se o sistema filosófico de dom Deschamps, estabelecendo paralelos com o sistema de Bento Espinosa, sobretudo, privilegiando a ÉTICA, e com aspectos que julgamos oportunos do pensamento de algumas figuras marcantes do Movimento das Luzes; na segunda parte, procede-se à análise do projecto utópico de dom Deschamps, inserindo-se este projecto em uma reflexão sobre as utopias. O autor desta dissertação está convicto de que as produções utópicas surgem ligadas a crenças mais ou menos poderosas, fluxos ideológicos, motivações profundas e mobilizadoras de elites ou de classes e outros grupos sociais. No contexto histórico do século XVIII e do Movimento das Luzes, a relevância com que se manifestam as produções utópicas (e falamos particularmente da sociedade francesa) surgem como expressão própria da crença no Progresso. O Progresso não se limitava a uma mera esperança, realmente os coevos observavam em muitos lados e de muitas formas manifestações palpáveis de progressos nas técnicas, nas ciências, nos bens de consumo. Sendo possível viver-se melhor, julgavam compreensivelmente que as ideias novas e os novos meios ao dispor dos homens permitiriam reconstruir o mundo e a vida. Os romances de viagens eram lidos com muito agrado; era deles que, em muitos casos, se alimentavam as utopias. Novelas do coração, dramas de família, diários de viagem, narrativas de lugares exóticos, projectos de reforma social, crítica de costumes, de toda esta larga variedade de géneros, se despertavam sentimentos e ideias. Grandes foram nessas áreas Montesquieu, Voltaire, Rousseau, Diderot, Morelly, Mably...

O reconhecimento público do sistema de dom Deschamps e o estudo crítico das suas ideias, contribuem, e já contribuiram, para olharmos para o século das Luzes com outros olhos. Foi, na verdade, um tempo de luzes e sombras, de contrastes e oposições, de dissidências e hostilidades inernas a um movimento que, afinal, nunca foi homogéneo. Já se conhecia bem a atitude “herética” de Rousseau, que se afastou dos Philosophes e de colaborador da Enciclopédia, e por razões bem distintas de outros que dela se afastaram por cautelas e temores. Há poucas décadas atrás surgiu-nos a “emergência intempestiva de dom Deschamps”que vem tornar mais difícil ainda “a determinação de um curso das coisas e de uma história das ideias”. Como compaginar um sistema tão absolutamente especulativo e metafísico com a atitude empirista que parecia triunfar, com o elogio da experimentação, com a grande física newtoniana, com uma ética liberal que vinha anunciar uma era de revoluções? Na verdade, o abade Condillac e o matemático D’Alembert não foram os únicos que entusiasmaram os espíritos progressistas, também o conseguiram Rousseau, o pré-romântico, Diderot, o barão d’Holbach. Quem precisamente terá mais marcado o Movimento terão sido os materialistas, que se esforçavam por construir uma nova ontologia, bem longe dos projectos de D’Alembert. Enfim, o século das Luzes foi também uma das épocas mais fecundas em utopias sociais, projectos revolucionários, liberais uns, anti-liberais outros. O chefe do “Movimento dos Iguais”, G. Babeuf, confessou-se discípulo de Diderot, julgando-o o verdadeiro autor do Code de la nature, de Morelly.

A revelação da obra de dom Deschamps contribuiu, e muito, para modificar o rosto do século dezoito, através de uma “mensagem única da filosofia francesa”.

Deste modo já não não surpreende agora descobrirmos um abade completamente descrente, que advogava um “ateísmo esclarecido”, um moralista generoso absolutamente convicto do seu ideário comunista, para quem a Cultura e a civilização haviam chegado ao seu termo, para cederem o lugar a uma sociedade onde a cultura, o Estado ea antiga moral, eram perfeitamente dispensáveis.

Tout e le Tout desigam o par de opostos que constituem o fundo da existência. Munido desta fórmula dom Deschamps construiu um sistema notável e singular. A bem dizer aquilo que o abade ambicionou, foi fortalecer o materialismo com uma nova ontologia, ou seja, com aqueles “princípios” sem os quais não se poderia deduzir e sustentar uma moral adequada à condição simultaneamente natural e social do homem.

Toda a filosofia de Deschamps explicita e desenvolve uma determinada intuição da existência pura, intuição a partir da qual forja a ideia do negativo e do positivo, que apresenta como sendo as nossas únicas ideias inatas. Bastaria este investimento numa determinada forma de inatismo, para sermos confrontados com um enorme desafio. A evidência primordial, o centro nuclear do sistema, é a intuição da unicidade fundamental da realidade, que ele designa, com os dispositivos retóricos do seu tempo, de “fin fond”.

Pois bem, o desafio que dedidimos enfrentar foi, não apenas apresentar este autor, mas também demonstrar nele a presença tutelar de um outro. A “sombra” a que fazemos referência no título, é realmente o espinosismo.

Denis Diderot, que não ignorava o espinosismo de modo algum, disse de dom Deschamps o seguinte, com aquele grande estilo que lhe era peculiar:

«Um monge chamado Dom Deschmps deu-me a ler uma das obras mais violentas e mais originais que eu conheço.»

 

Não ignoramos que as metafísicas de sistema sofreram profunda erosão desde o século XVIII, perdendo credibilidade e prestígio na comparação com o progresso científico, mais útil, mais técnico, mais irrefutável (aparentemente). O sistema de dom Deschamps não escaparia à Crítica kantiana, e David Hume não o teria poupado. Contudo, o sistema espinosano não apenas escapou e já beneficiou de várias ressurreições, como marcou de muitos modos o desenvolvimento das filosofias materialistas (ou naturalistas); e não apenas estas, porque sabemos a fortíssima presença de Espinosa no pensamento de G. W. F. Hegel. Dom Deschamps está longe de possuir a envergadura de Espinosa, mas demonstra, por um lado, a influência viva do espinosismo no interior das filosofias materialistas, bem diversas de resto, e, por outro, uma solução para o problema do Ser assaz interessante; tão interessante que ainda hoje é lícito discutir-se se Deschamps foi, ou não, um precursor de uma nova, e mais moderna portanto, dialéctica do Ser.

  Vários outros aspectos do pensamento de dom Deschamps poderiam aqui ser relevados, mas iremos fazê-lo no decurso desta dissertação. Refiram-se rapidamente apenas mais dois tópicos: a intuição deveras promissora do que seja a Ideologia (não somente a sua aparência de erro e ilusão, mas, e é isto que é essencial, de efeito necessário de relações sociais de desigualdade e dominação que, deste modo, permanecem ocultas), e a intuição de que a filosofia é também linguagem, ou um puro trabalho sobre a linguagem que exprime adequadamente a existência, derivando daí que a verdade do mundo e da vida se encontre por meio de uma gramática. A fórmula do mundo aloja-se já nas mais básicas locuções do senso-comum: o sim e o não.

 

 

 

 

 

 

Biografia de Deschamps

 

Considerando que dom Deschamps é um autor quase desconhecido em Portugal, sobretudo pela produção filosófica nacional, achamos adequado inserir uma biografia, embora tal não seja usual em dissertações de doutoramento.

Lèger-Marie Deschamps nasceu em 10 de janeiro de 1716, em Rennes, o quinto de nove irmãos, oriundo de uma família relativamente modesta, que viu a sua situação de algum desafogo ser atingida gravemente por um terrível incêndio. Ingressa muito novo na ordem dos beneditinos, abadia de Saint-Melaine, de Rennes, em 8 de Setembro de 1733, cidade que abandona em 1734. Ignora-se ao certo onde terá recebido formação teológica, provavelmente nos mosteiros de Touraine e de Anjou, até 1743. Em 1745 o seu nome surge incluído no pessoal da abadia de Saint-Julien ; antes, transitara pelo vale do Loire onde se concentravam importantes mosteiros da ordem. Em Tours, colaborou na elaboração de uma história da região de Touraine. A partir de 1762 é destacado para o priorado de Montreuil-Bellay, perto de Saumur, na região de Poitou, nomeado seu procurador. Morre, provavelmente de cirrose, em 19 de abril de 1774.

Declara o próprio que começou a elaborar o seu sistema filosófico a partir dos seus 25 anos, tendo-lhe dedicado os dez anos seguintes. Todavia, tomando como testemunho fidedigno o relato de dom Patert, seu companheiro de abadia e amigo sincero, O Verdadeiro Sistema foi resuluado de um trabalho meditado durante mais de trinta anos, sucessivamente revisto e carescentado com novas explicações. No entanto, conforme declarações do próprio, o escopo principal – as Observations métaphysiques e as Observations morales - estaria terminado no início da década de cinquenta, tendo a obra sofrido posteriormente alterações de pouca monta. O Verdadeiro Sistema é composto de duas partes: As Observações metafísicas, e as Observações morais, todos os demais textos foram redigidos nas duas décadas que levou ainda de vida.

  Poucos anos de idade o separavam de Rousseau, Diderot, Helvétius, d’Holbach. Todos alcançaram em vida uma notoriedade que ele jamais alcançou. Apesar disso, dom Deschamps não foi em vida um ilustre desconhecido: correspondeu-se com Helvétius, encontrou-se com Diderot, troucou algumas missivas com Rousseau, Voltaire, d’Alembert.

Orirundo do povo, o monge que nunca conquistou cargos importantes, viveu metade da sua vida no pequeno mosteiro de Montreuil-Bellay, lado a lado com a iséria aflitiva dos camponeses da região. Fisicamente era um dindivíduo corpulento, de temperamento impulsivo. A amaizade que nasceu entre ele e o marquês de Voyer mudou de algum modo o percurso e as ambições. O priemiro encontro verificou-se por volta de 1759. A sua abadia confinava com as vastas terras dos Argenson. O marquês era filho de um ministro da guerra de Luís XV e, por altura do primeiro encontro com Deshamps, já havia feito uma brilhante carreira militar (ilustrou-se na batalha de Fontenoy em 1745, e ascendera aos elevados cargos de governador real de Vincennes, governador militar de Poitou, e outros. O marquês, homem culto e amigo de Philosophes, serviu de intermediário entre Deschamps e alguns dos mais célebres iluministas. O seu temperamento melancólico, que parecia sofrer daquele “aborrecimento” existencial de que se queixaram tantos intelectuais e nobres dessa época, terá seguramente inspirado algumas das páginas mais visionárias do projecto utópico do seu amigo dom Deschamps, que extinguiria de vez as condições da infelicidade. Por outro lado, a fama de libertino não parece haver molestado qualquer escrúpulo moral do monge, o qual, de resto, parece ter apreciado as mulheres e a bebida.

Dom Deschamps fala com compaixão sincera em cartas trocadas com o seu amigo marquês, da brual miséria dos camponesescujas filhas se prostituiam para matar a fome, e que o procuravam constantemente para lhe solicitar auxílio, pedidos que ele remete frequentemente para o marquês. A sua utopia social teve eco na personalidade generosa, e algo atormentada, do grande aristocrata. Um dos seus descendentes haveria de lançar fogo ao próprio castelo no dealbar da Revolução de 1789, e protegeria um dos foragidos do decapitado Movimento dos iguais, o carbonário F. Buonarotti...

Isolado na província, numa minúscula abadia (com apenas dois abades), Deschamps estaria condenado a uma vida completamente provinciana e obscura. Não foi o caso, muito embora se possam atribuir-lhe, por via disso, alguns traços da sua obra e do seu pensamento. Tem sido motivo de perplexidade que Deschamps haja enveredado pela metafísica, com vocação de sistema. Não é de excluir a influência do seu modus vivendi. Em nossa opinião é de relevar tais factos, não apenas pelas dificuldades que encontrou, ou pela independência de que gozou, mas porque devem ser tidos em devida conta para a compreensão de uma forte personalidade que ambicionou afirmar-me num meio relativamente hostil, fora e contra os grandes centros de cultura e de civilização, crítico da Cidade, dos novos costumes, tendendo a considerar frívolos os debates de ideias, e inútil tudo aquilo que respeitamos como Cultura. É legítimo interrogarmo-nos se dom Deschamps não transfigurou o isolamento e as particularidades provincianas da sua vida numa disciplina e orientação de pensamento, austero, ascético, moralizante, numa espécie de ideal de sábio com vocação profética e evangelizadora. Psicologicamente a sua teimada convicção de haver descoberto a Verdade única e universal, prender-se-á de algum modo tanto com a sua formação teológica e as suas meditações solitárias monásticas, como com a imagem que foi forjando de si mesmo nas frequentes estadias no hospitaleiro castelo dos Ormes, propriedade de notabilíssimos condes e marqueses de França, que o escutavam com amizade e admiração. Os seus escritos e os seus comportamentos levam-nos a conceber um indivíduo que, consciente e decididamente se conduziu como um filósofo que transportava o significado último da existência, ao arrepio do filósofo mundano que se populariza então, e que Diderot tão bem soube exprimir. Até neste ponto a influência de Espinosa, que irei demonstrar, ter-se-á manifestado. Espinosa legou para a posteridade essa imagem de sábio desprendido dos bens mundanos. Temos que nos interrogar se nas similitudes com o grande pensador de Haia, filho de judeus portugueses, não se encontraria a presença viva de uma forte, mas bem dissimulada admiração.

Os beneditinos da Congregação de Saint-Maur não eram muito inclinados para metafísicas modernas, na sua formação pesavam sobretudo Platão e Aristóteles, Descartes estava ainda penetrando ao tempo da adolescência de Dom Deschamps, na forma redutora conveniente da escolástica. Espinosa havia sido silenciado pela reforma da ordem encetada por Dom Lami. O afastamento de Espinosa ter-se-á devido com certeza ao opúsculo crítico de Dom Lami, de 1696, intitulado Le nouvel athéisme renversé ou Réfutation du système de Spinoza. É de reter, porque iremos debruçar-nos sobre um texto de Deschamps de refutação do sistema de Espinosa.

Dom Deschamps foi marcado profundamente pela sua amizade com o marquês de Voyer d’Argenson. O castelo deste grande proprietário e grande senhor da corte de Luís XV, situado nas proximidades da abadia de Montreuil-Bellay, constituía um notável centro da vida literária da província. Servira de refúgio ao conde de Argenson, antigo secretário de Estado da Guerra, caído em desgraça em 1757, e amigo dos Philosophes. Diderot e d’Alembert dedicaram-lhe a Enciclopédia. A biblioteca do castelo era famosa. A mansão da ilustre família de admirados intelectuais, era apelidada como Academia dos Ormes.

Não foi com o velho conde que Deschamps estabeleceu amizade, foi com o filho dele, Marc-René, marquês de Voyer d’Argenson, distinto oficial militar de carreira que, até 1762, se havia ilustrado em diversas campanhas militares; tendo alcançado o comando militar da Alta-Alsácia e o cargo de governador de Vincennes é citado com elogios nas Memórias de Frederico da Prússia. Homem de grande cultura, como, de resto, era tradição na família: seu pai e seu tio haviam legado aos contemporâneos escritos de fina inteligência, inclusivamente sobre Portugal. René, ferido numa campanha militar, possuía uma personalidade inquieta e angustiada que dir-se-ia neurótica, e que reflectia bem as perturbações da grande nobreza da sua época, tocado profundamente pela desgraça política de seu pai, pela atmosfera de revolta e ressentimento em que fora educado. É legítimo admitir que o projecto deschampsiano utópico de uma sociedade feliz procurava solucionar também os conflitos da personalidade do controverso marquês, alvo de maldizeres e calúnias lançadas contra ela a partir de Paris, com origem nas invejas de uma nobreza decadente e corrupta.

A correspondência de Deschamps para o marquês inicia-se em 1763 e por ela vemos a sincera amizade que ligava os dois homens. E isto é grandemente significativo, pois que a imagem que fazemos do beneditino, homem grande e obeso, é a de um indivíduo tenaz, ousado, corajoso, capaz de ímpetos apaixonados, inclinado a comportamentos que roçavam a violência, implacável com os seus inimigos.

Montreuil-Bellay situava-se na periferia de uma região na qual o mercado se expandia, e onde surgiam as primeiras manufacturas. Os contrastes geográficos e económicos acentuavam-se rapidamente. Os camponeses de Montreuil-Bellay encontravam-se extremamente empobrecidos, a correspondência de Dom Deschamps relata casos de grande miséria. Uma ambiência social que influencia enormemente a consciência do beneditino. De um lado o vale do Loire, rico em belas vinhas, do outro as matas de Mauges, com uma agricultura de subsistência. Por fim Montreuil que entra em decadência, perdendo predominância com relação a Mauges, lentamente despovoada, desprovida de qualquer núcleo burguês, onde vai morrendo a anterior actividade industrial ligeira (curtumes, entre outras) a jusante do artesanato rural.  O próprio comércio de vinhos e aguardentes que percorria o rio que a atravessava, troca Montreuil por Saumur. A população rural perde a única escola para os seus filhos, e não possui meios para pagar os impostos, os rapazes emigram, as raparigas prostituem-se ou demandam os conventos. Bandos de vagabundos pilham as redondezas. São estas misérias que chocam profundamente o coração e o espírito de Dom Deschamps. Não se verifica aqui uma ascensão do capitalismo, com o cortejo das suas misérias, mas, antes, é a burguesia nascente que abandona Montreuil. Estes factos e uma leitura atenta da utopia de Dom Deschamps proíbem-nos interpretações redutoras, do género de que o Autor se opunha ao desenvolvimento do capitalismo, a favor de um desenvolvimento sustentado nas estruturas senhoriais ou feudais. A utopia de Deschamps é uma utopia camponesa, que se compreende melhor à luz desta geografia social, afligida por irresolúveis contradições.

 

Bibliografia

 

A explanação e análise das obras de dom Deschamps justificam-se, não só pelo facto do pouco conhecimento e estudo de que ele goza entre nós, como pela razão de que o acervo completo das suas obras somente foi publicado em França há poucos anos atrás. As obras de dom Deschamps vêm identificadas nas notas reunidas no termo da dissertação, com as seguintes siglas:

 

O .Ph. : œuvres Philosophiques, introduction, édition critique et annotation par Bernard Delhaume, Avant-Propos de André Robinet, 2 tomos, Paris, Librairie Philosophique J. Vrin,1993. Constitui a primeira edição completa das suas obras.

 

La Voix : La Voix de la Raison contre la raison du temps, et particulièrement contre celle de l’auteur du Système de la Nature, Par Demandes et Par Réponses. Bruxelas, Georges Frick, 1770.

 

Em 1863 um académico de nome Émile Beaussire, professor da Faculdade de Letras de Poitiers, descobriu e exumou Le Vrai Système, obra composta por diversos cadernos, cuja autoria se atribuía até então a dom Hugues Mazet, conservador da biblioteca municipal, em 1792, quando, na verdade, este fora somente o copista, que salvou a obra do mestre e mentor de uma minúscula seita da qual ele, dom Mazet, era membro. Esta copia é composta de três tomos, sob o título de La Vérité, ou le Vrai Système, datada de 1775, sem nome do autor. O tomo I, primeiro caderno, é composto pelos textos intitulados « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale », e, no segundo caderno, « Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale », e as « Additions »; o tomo II, ou 3º caderno, contem « Le Mot de l’énigme métaphysique et morale, appliqué à la théologie et à la philosophie du temps, par demandes et par réponses ». Os dois volumes identificados por Beaussire constituíam na realidade apenas uma parte da obra; a maior parte do que faltava foi descoberta por uma jovem investigadora russa, quarenta e três anos mais tarde, Elena D. Zajceva (faleceu em Moscovo em 1967. A sua tradução do Vrai Système, revista e anotada por L.S.Gordon, foi somente publicada em 1973, em Moscovo, por Boguslavski, Gordon e Porchenev) – vários cadernos contendo as Observations métaphysiques, Observations Morales, Le Mot de l’énigme métaphysique et morale, Préface, Refléxions métaphysiques préliminaires, Chaîne des vérités dévelopées, Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale.

 

Le Vrai Système compõe-se de seis cadernos.

De acordo com as pesquisas do Professor B. Delhaume, podemos ficar certos de que Deschamps teria já constituído Le Vrai Système aos 45 anos de idade. Depois disso contactou com várias personalidades de relevo, como já fizémos referência, por intermédio do marquês de Voyer, com a intenção de tactear as possibilidades de publicação, sem sucesso porém.

 

Apenas uma parte da correspondência está publicada nas Oeuvres Philosophiques. O Professor da Universidade de Poitiers, Bernard Delhaume, já anunciou a publicação de toda a correspondência para breve.

 

O Prefácio de O Verdadeiro Sistema, foi corrigido depois de 1770, pois regista uma crítica ao Système de la Nature, de d’Holbach, publicado em 1770, sob o nome de Mirabaud.

Em 1771 uma descendente dos Argenson, descobriu no castelo dos Ormes, uma obra intitulada La vérité tirée du fond du puits, que veio a confirmar-se rapidamente ser de dom Deschamps, que se encontra publicada nas Obras Filosóficas. B. Delhaume mostra-se convencido de que este texto representa a forma prospectiva pela qual Deschamps desejava sondar os seus eventuais leitores, para, em seguida, transmitir a doutrina de O Verdadeiro Sistema.

Por conseguinte, dom Deschamps pôde publicar apenas dois opúsculos, mas jamais O Verdadeiro Sistema, o qual chegou ao conhecimento de um público muito restrito somente em plena segunda metade do século XIX. Esta edição, a edição de E. Beaussire, é fiel aos manuscritos, mas a introdução que deles faz é extremamente crítica. E. Beaussire era um académico profundamente anti-hegeliano, e viu no sistema de dom Deschamps um “antecedente” francês do hegelianismo, um precursor da dialéctica do filósofo de Berlim, assunto a que iremos voltar com mais demora. Foi, portanto, o hegelianismo que encontra e que o incomoda, e não Espinosa ou o espinosismo.

Dom Deschamps redigiu um texto com o qual pretendeu afastar as suspeições sobre um eventual compromisso com o espinosismo; na verdade fez quatro versões dessa Réfutation courte et simple du système de Spinoza, que enviou ao seu amigo marquês entre Março e Julho de 1766:«Songez que c’est à vous que je dois l’idée de cette Réfutation, et que cette idée est la lus exquise qui pût m’être suggérée pour faire tomber les armes des mains de tout croyant, et pour donner aux mécréants ce qui leur manquait, la vraie raison de l’être, ou, plutôt, pour les préparer à cette raison.»

Rousseau, d’Alembert e outros mais haviam encontrado o espinosismo nas peças do Système que Deschamps lhes havia mostrado. A carta parece indicar que o próprio marquês necessitava dessa refutação para aderir com mais confiança às ideias do monge. Refutar Espinosa, ou sjea, o espinosismo, constituía para Deschamps, a partir de certa altura (anos 66?) uma atitude indispensável e urgente para seduzir de todo o seu amigo, os ilustres convivas que se hospedavam regularmente no castelo dos Ormes, e desbravar caminho para a publicação da obra de uma vida.

 

 

Advertência

 

Optámos por dividir a nossa exposição em duas partes. Na Parte I expomos a ontologia do sistema, na Parte II procedemos à análise do seu projecto de uma utopia social. Na medida em que o sistema é fechado, circular e consequente, não pudémos evitar realizar algumas incursões nas ideias expostas na Parte II. Um dos eixos desta dissertação – a presença tutelar do espinosismo- é explicitada principalmente na Parte I. O mesmo sucede com a segunda intenção que foi colocar à reflexão o problema do(s) materialismo(s) no século XVIII, século das Luzes, a apartir das teses materialistas de dom Deschamps. Na medida em que os mais importantes materialistas da época não ignoraram de modo algum o monismo espinosista, que até teriam feito inflectir o espinosismo em direcção a um materialismo (os “espinosistas modernos”, na famosa qualificação de Diderot) conforme o julgam alguns intérpretes, julgamos nós que se justifica a relativamente extensa análise da heterogeneidade de tal corrente filosófica, sem subtrairmos a hipótese de existir nela um denominador comum.

 

 

 

 
 
 
O Verdadeiro Sistema
Parte I

 

Capítulo 1 – A Existência pura

 

Introdução

 

    Numa época em que a vanguarda do pensamento e da cultura se orientava para a experiência, para a observação dos fenómenos naturais, para as ciências particulares, a linguagem e o corpo das ideias de dom Deschamps apresenta-se como um acontecimento aparentemente retrógrado. Que novidade poderia oferecer um sistema declaradamente fechado e definitivo, pelo qual tudo ficava dito e depois do qual nada mais haveria para investigar?

  No entanto, iremos verificar que o seu sistema não fora o último nem o único na década de sessenta do século XVIII, embora haja sido o mais singular e ousado.

  É entre os Philosophes que Deschamps encontrará resistências incontornáveis. O seu conceito de natureza, por exemplo, apresenta-se  demasiado abstracto, generalista, quase a contra-corrente, aos olhos dos seus contemporâneos, que já davam passos na análise empírica e experimental. As especulações de Deschamps não suscitam interesse num d’Alembert por exemplo, e Voltaire manifesta uma recepção algo irónica e desprendida.

Dom Deschamps foi um metafísico de sistema. Buscou um princípio, ou fundamento, e dele deduziu uma série lógica de consequências.

  O corpo principal das suas teses constitui o que ele intitulou La Vérité, ou Le Vrai Système. O O programa anuncia-se desde logo no título do primeiro caderno: a revelação de Le Mot de l’Énigme Métaphysique et Morale.

Devemos, por conseguinte, iniciar a nossa exposição pela definição primeira, pelo axioma fundamental na organização do sistema.

  Os termos designam-se por O Todo (Le Tout) e Tudo (Tout).

Tout e Le Tout são os princípios do Ser e do pensar. Par de opostos, compõem o plano metafísico da noção nuclear de Existência ( Existence). Le Tout é o Uno, a Unidade, ser universal que une os entes e as coisas; é composto por “partes”, isto é, particularidades finitas que ele classifica como nuances ou modificações do todo. É o domínio da pura relatividade do devir. É o reino da relação entre partes. Pelo contrário, Tout é a negação das relações e, portanto, do devir. É assim que ele o classifica de Existência “em si”. Sem a negação não haveria a firmação de Le Tout, que é a Natureza.

 

   Para Deschamps existe apenas uma e somente uma substância: a Existência. Pode ser apreendida sob o seu aspecto positivo. que é Le Tout, ou sob a seu aspecto negativo, a que ele chama Tout. Muito embora ele fale em dois seres, noutras fala num só. Porque então critica Espinosa, como iremos verificar?

Escreve Espinosa: « Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»

  Numa primeira abordagem, esta definição não é respeitada por dom Deschamps: «Tout, que de modo nenhum fala de partes, existe e é inseparável de Le Tout universal, que fala de partes, e do qual ele é a afirmação e a negação simultaneamente. Tout e Le Tout são os dois nomes do enigma da Existência, nomes que o grito da verdade distinguiu colocando-as na nossa linguagem.»

Há que optar: ou a substância, em rigor, apenas se aplica à Existência, ou ele admite duas.

  «entendo por Tout, a existência em si, a existência por ela mesma, isto é a existência considerada como fazendo um só e mesmo ser que não se distingue mais então dos seres, como sendo o ser único, e, consequentemente, sem relação, ou, como já o disse, sem existência por meio de outra coisa senão por ela mesma. »

   A definição de Tout corresponde, nestes termos, à definição clássica e rigorosa de substância, ou causa sui: aquilo que é em-si, sem necessitar de outra coisa (ou substância) para existir. Neste sentido, equivale à definição filosófica e teológica de Deus. Contudo, o problema situa-se entre Descartes e Espinosa: o primeiro, como se sabe, recorre à ambiguidade, isto é, à concepção “operatória” de duas, se não mesmo de três, substâncias: res cogitans, res extensa, e a substância divina, dotada esta de atributos especiais. Espinosa, garantidamente contra Descartes, afirma a unicidade da substância. Uma única substância, porém, dotada de dois atributos essenciais, entre outros: Pensamento e Extensão.

   Parece, por conseguinte, que a única substância, para Deschamps, é a Existência, que ele designa também por Tout : “Tout, ou o ser único

   Entretanto, Le Tout é o “princípio », como ele escreve : “De Le Tout, que é o princípio”

   Impõe-se, portanto, uma definição adequada e uma interpretação que sobreleve outras. Dom Deschamps mostra conhecer muito bem a problemática que envolve a definição de Substância. Malebranche era bem conhecido na ordem dos beneditinos, o cartesianismo seguramente, Espinosa, em segunda mão pelo menos, ou seja, já refutado. À sua maneira, com originalidade, encontra uma nova solução: a tese dos “dois contrários”, dos “dois últimos extremos possíveis”. A tese dos “dois pontos de vista”. O que seria para Espinosa a natura naturata, é para ele Le Tout. Sendo contrários entre si, Le Tout e Tout, tal solução “escapa” às “dificuldades” de Espinosa. Julgava ele.

Que entende Espinosa por substância?

    «Entendo por substância o que existe em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa pelo qual deva ser formado.»

E por atributo?

«Entendo por atributo o que o entendimento percebe da substância como constituindo a essência dela.»

   Não existe qualquer ambiguidade na exposição e na argumentação de Espinosa: Não há duas substâncias com o mesmo atributo; não há duas ou mais substâncias com atributos diferentes; um ser absolutamente infinito deve ser necessariamente definido como um ser que é constituído por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime determinada essência eterna e infinita.

 

    A nosso ver, a inspiração mais fecunda vem do espinosismo. Apesar da fórmula dos contrários, assumida como eixo fundamental do sistema.

    Exposta assim resumidamente a questão essencial, isto é, o problema da substância, erguem-se numerosas interrogações. Deschamps atacou-as de frente, fosse por meio de interlocutores, fosse por um notável esforço de exposição argumentativa. O Verdadeiro Sistema contém as teses e os seus desenvolvimentos e explicações, mas outros longos textos mais tardios apontam para a mesma direcção, sem quebras e sem revisões de fundo: definir o conceito de totalidade e deduzir as consequências. Às vezes com muita repetição, quase em círculo, pois que, de certo modo, um sistema assim é comparável a um círculo.

Os cadernos principais que consubstanciam o corpo e o cerne das suas ideias, intitulam-se La Vérité, ou Le Vrai Système, o Tomo I – Le Mot de l’énigme métaphysique et morale ; Epître à mês semblables les hommes ; Préface; Réflexions métaphysiques préliminaires ; Chaîne des vérités développées ; Précis en quatre thèses du mot de l’énigme métaphysique et morale ; Additions à l’appui de ce qui précède. O Tomo II – Le Mot de l’énigme métaphysique et moarale, appliqué à la théologie et à la philosophie du temps, par demandes et par réponses. O Tomo III –Observations morales . O Tomo IV – Observations métaphysiques. O Tomo V – Tentatives sur quesques-uns de nos philosophes, au sujet de la Vérité.

Deste modo, o essencial está contido nas Observações metafísicas e nas Observações morais, sendo que estas contêm, sobretudo, a solução utópica dos problemas existenciais dos homens.

No Prefácio, Deschamps alerta, desde logo, para que não o confundam com as “nossas semi-luzes filosóficas, tão justamente encaradas como perigosas, (porque) destroem sem estabelecer”, enquanto que a verdade do seu sistema “estabelece incontestavelmente”.

Não basta a crítica destrutiva, pois esta é o que faz a “filosofia reinante”, isto é, a filosofia das luzes na sua vertente mais violentamente anticlerical, que ameaça conduzir-nos para uma “revolução”, sempre a evitar como tão perigosa como inútil, pois “não impedirá o estado de leis divinas e humanas de subsistir, e o mal moral, do qual este estado é a causa, de existir com a mesma força, embora sob outros disfarces”

O ateismo só tem de comum com O Verdadeiro Sistema, o facto de rejeitarem ambos a religião, porém existe uma extrema diferença:” é que O Verdadeiro Sistema ao negar a moral do teísmo afirma a metafísica, donde extrai uma moral, enquanto que o ateísmo, porque não conhece princípio algum, nega um e outra, e deixa-nos com uma moral arbitrária”.

Porque a metafísica tem por objecto considerar os seres “em grande, em geral, em total; considerá-los naquilo que eles possuem todos de rigorosamente comum”.

Por conseguinte, Deschamps é rigorosamente um metafísico de sistema, e procede em conformidade: buscou e encontrou um fundamento, ou de acordo com as suas palavras: o fin fond da existência.

Na medida em que Deschamps organizou o seu sistema numa intensa atmosfera espinosista, achamos adequado descrever essa atmosfera. Afinal de contas, aquilo que pretendemos demonstrar é precisamente a presença do espinosismo em dom Deschamps, muito embora não exclusivamente.

 

 

 

 

 

1. 1. O espinosismo no Século XVIII

 

 

   Ninguém escapa incólume a mais de cinquenta anos de censuras, torções, perseguição dos seus escritos, aleivosias sobre a sua vida e personalidade. Nada adiantaríamos de novo se disséssemos que Espinosa sofreu de tudo em vida e depois de morto. Muito poucos ombreiam com ele nessas histórias negras de que é feita a história das ideias.

   Quando dom Deschamps declara haver terminado o seu sistema, à entrada da década de sessenta, já o próprio cartesianismo claudicava como fonte inspiradora dos seus contemporâneos. Sem esta crise das metafísicas, é mais difícil interpretar as ideias de dom Deschamps.

 

Os mais célebres Philosophes, Voltaire, d’Alembert, Diderot, d’Holbach, haviam lido Espinosa. Todos eles reagiram, de uma maneira ou doutra, ao ousado sistema do filho de portugueses.

O espinosismo, mal lido e compreendido o mais das vezes, é instrumentalizado na luta contra o pensamento mais conservador, e banido por este. Manuscritos clandestinos, bibliotecas discretas, reuniões conspirativas contra a Igreja instalada no poder, tudo serve, e o espinosismo é útil para o mais cerrado combate ao clericalismo.

«Espinosista, s.m. (Gram.), partidário da filosofia de Espinosa. Convém não confundir os espinosistas antigos com os espinosistas modernos. O princípio geral destes, é que a matéria é sensível, o que eles demonstram pelo desenvolvimento do ovo, corpo inerte, que, unicamente devido ao calor graduado, passa ao estado de ser sensível e vivo, e pelo crescimento de tudo que é animal que, no seu princípio, é apenas um ponto, e que, pela assimilação nutritiva das plantas, numa palavra, de todas as substâncias que servem à nutrição, torna-se um grande corpo sensível e vivo em um grande espaço. Desse facto concluem que somente existe a matéria,e que ela basta para tudo explicar; no resto, seguem o antigo espinosismo em todas as suas concequências.»

Diderot, autor desta citação, por um lado aceita sem reservas a ÉTICA, nas suas consequências, que são de monta, e inseparáveis dos postulados, axiomas e definições, por outro, satiriza um certo espinosismo no Jacques, le Fataliste. Terá lido na íntegra a ÉTICA, e no original? Os especialistas duvidam profundamente. Julgamos nós que Diderot satiriza, ou aponta-lhe os excessos, o fatalismo de d’Holbach, isto é, o modo como este utiliza a herança espinosista. Mas esta sátira parece claudicar, nas últimas palavras sentidas e elogiosas proferidas por Jacques relativamente ao seu capitão fatalista...O melhor seria, segundo Diderot, actualizar Espinosa com um novo vitalismo. O exemplo do “ovo”, que exprime o problema científico capital, é elucidativo : trata-se da questão essencial, isto é, da criação, do aparecimento da vida, da emergência do novo, qualitativamente novo, da capacidade criadoramente fecunda da natureza. E isto remete-nos para as apregoadas “dificuldades” do sistema de Espinosa, aparentes ou reais. Escutam-se aqui os ecos da famosa crítica de Pierre Bayle, enviesada, ao sistema de Espinosa: depois de haver caracterizado Espinosa como “um ateu de sistema”, considera que não é nessária uma longa e complicada disputa com ele, porque basta “refutar a proposição que está na base do seu sistema...:saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todas as outras são modificações desta substância»,« uma suposição tão estranha, que ela desloca a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas;...é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito».

 Não é um dado adquirido que Bayle haja lido Espinosa na totalidade, e sobram dúvidas sobre a interpretação de algumas das suas teses. Retomaremos o célebre artigo de P. Bayle em altura que nos parece mais oportuna.

A ideia, por exemplo, de que a filosofia de Espinosa se assemelhava ao pensamento oriental, ou do extremo oriente, seguira o seu caminho sem ninguém que se opusesse, o que é verdadeiramente surpreendente e coloca a um historiador da filosofia graves suspeitas sobre os modos como se fabricam os legados e os putativos herdeiros.

 Desde Bayle e Malebranche, a Fénelon e ao Padre Tournemine, mestre de Voltaire. Descobrir coincidências genéricas é uma coisa, afirmar filiações é outra bem diversa.

À mistura com o pensamento científico que tenta abrir caminho, sopram os ventos a favor de modas, de mistérios, de superstições eruditas, de hilozoísmos antigos, de Giordano Bruno e Campanella restaurados, de filosofias orientais, de Cabala. Na profusão dos escritos mais medíocres ou mais ilustrados, Espinosa transforma-se numa espécie de prêt-à-porter, que, quanto mais se utiliza, mais se degrada. E sempre Bayle: a classificação da filosofia de Espinosa como puro panteísmo. Ate hoje, porque ainda agora lemos e escutamos tal identificação, ou para denegrir, ou para emprestar autoridade a novas utopias, ou simplesmente porque a tendência para reduzir e “compactar” um pensamento complexo e um sistema em uma fórmula cómoda, embora inútil e vazia, é recorrente.

Separar as águas, distinguir os panteísmos renascentistas e orientais, do materialismo e, neste pé, recuperar Espinosa, foi trabalho duro, mas minoritário, de alguns espinosistas do século dezoito. Trabalho nem sempre isento de assimilações apressadas que torciam convenientemente o pensamento espinosano. É justo, no entanto, reconhecer que os mais importantes corifeus quer do materialismo, quer do naturalismo, realizaram esforços notáveis para conservarem uma relação honesta com o espinosismo, ou com aquilo que tomaram como sendo as verdadeiras teses de Espinosa, rompendo com algumas delas sempre que as considerassem desadequadas aos novos contextos. O materialismo (que é, aliás, bem diverso) do século dezoito francês não é um puro espinosismo. O materialismo construiu os seus próprios caminhos.

Introduzir o movimento na matéria, por exemplo, eis a tarefa a que se dedicaram Diderot, d’Holbach, Robinet, naturalistas vários, deístas, panteístas, ateus. Eram os passos hesitantes das ciências da vida, lentamente sacudindo o lastro dos naturalismos e dos panteísmos.

 O alvo dos ataques de boa parte dos textos publicados nesses anos, em edições anónimas ou com falsos nomes, é o antropomorfismo, indo-se buscar apoio na crítica da concepção antropomórfica de Deus, a Espinosa. No entanto, de Espinosa há pouco, e o que se faz tomar como espinsosismo é contrário à atitude espinosana : este respeitava a Bíblia, aqueles escritos não. São usuais as caricaturas de um Deus « ciumento » e « colérico », insiste-se na convicção de que a natureza não é imperfeita, pois que tudo decorre da Necessidade interna que ela contém, que Deus é Natureza, e esta é a soma, ou o conjunto, de todos os seres, de todas as propriedades e de todas as energias.

Certamente que Espinosa jamais escreveu em parte alguma que Deus equivalia à pura materialidade, e determinadas teses adulteravam gravemente o seu pensamento, revelando uma falta de cuidado, que se explica menos pela displicência e superficialidade, e mais pela intenção de forçar o caminho às ideias materialistas, mesmo que inconsistentes e contaminadas por panteísmos. Também nos parece evidente que o propósito principal, se não mesmo o único, destes escritos, era atacar a religião oficial e a Igreja. É o anti-clericalismo que está em marcha. O espinosismo, ou melhor, uma versão fraca e popular do espinosismo, foi utilizada como uma eficaz ferramenta ideológica e política pelos mais diferentes quadrantes ideológicos.

Queremos insistir neste ponto: as entorses que o sistema de Espinosa sofreu, e as críticas de que foi alvo, não se resumem àqueles, e foram muitos, que o recusaram e combateram, mas igualmente procederam assim aqueles que, em certos aspectos, até por ele se deixaram influenciar. Neste vasto grupo havemos de incluir o próprio Malebranche, que foi um dos maître-à-penser, e Pierre Bayle evidentemente. A tese Deus sive natura, propiciava as mais diversas interpretações. Para Malebranche, por exemplo, e isto foi muito significativo e carregado de consequências, a perfeição divina mostrava-se inconciliável com a expressão de Espinosa: Deus havia de ser um ente diferente e superior ao mundo por ele criado. Todas estas interrogações que temos vindo aqui a mencionar, estão presentes nos textos de Dom Deschamps. Ele mostra conhecê-las perfeitamente.

Pierre Bayle escreveu no Dicionário ( art. “Spinoza”): « Assim, no sistema de Espinosa, todos aqueles que dizem : Os Alemães mataram dez mil Turcos, falam mal e falsamente, a menos que eles queiram dizer que Deus modificado em Alemães tenha morto Deus modificado em dez mil Turcos ;  e é assim que todas as frases pelas quais se exprime o que fazem os homens uns contra os outros só podem ter este sentido verdadeiro : Deus odeia-se a si mesmo, pede graças a si mesmo, e a si mesmo se recusa ; persegue-se, mata-se, come-se, caluinia-se, levanta-se sobre o cadafalso»”

Esta incompreensão de Deus sive natura, gravou-se indelevelmente nos vindouros. Espinosa foi convertido e reconvertido num panteísta. E num ateu puro e duro. Porém, quando falamos de Bayle não devemos esquecer o seu método expositivo e o seu estilo irónico, ou seja, não é inusitado admitir que ele, nesta frase, transmitia adequadamente o pensamento de Espinosa, através de uma hábil caricatura e dissimulação: a crítica espinosana do antropomorfismo não é veiculada?

A incompreensão revelada por Fénelon, por exemplo, que apenas conseguiu ver em Espinosa uma identificação de Deus com a totalidade das criaturas, é tanto mais curiosa quanto ele próprio acaba por argumentar no terreno construído pelo próprio Espinosa: Deus ou o Ser absoluto, infinito, não poderia ser composto de partes; o infinito de que fala, ou o “infinito infinitamente infinito” de Malebranche, corresponde, afinal, à substância em Espinosa e à anterioridade da substância relativamente às suas afecções...

A questão da eternidade dos modos, por um lado, e, por outro, da sua existência temporal, é outra face de uma controvérsia que gerou muitas confusões. A confusão entre Deus e as coisas não está presente de modo algum nas teses da ÉTICA, e todo o génio filosófico de Espinosa foi precisamente no sentido de evitá-la. De outro modo não faria qualquer sentido a figuração negativa que Espinosa construiu do indivíduo alienado e esquecido. Ou seja, Deus é a totalidade infinita, a ordem necessária e imanente, e não é, de modo algum, este ou aquele indivíduo, impelido pelo seu conatus a perseverar na existência particular, muitas vzes de modo egocêntrico, iludido pelo seu valor real, iludido pelo seu verdadeiro papel na ordem do mundo, ou submetido, inerme, resignado e infeliz.

Aquilo que a teologia adversária não queria, não poderia, aceitar, era a tese espinosana da necessidade. A todo o custo, impunha-se para ela a inclusão do livre-arbítrio do Criador e, por tabela, a distinção das criaturas relativamente ao Criador. É aqui que reside, em nosso ver, o carácter irredutível das posições. Ora, neste ponto, não há dúvidas : Espinosa orientou grande parte do seu esforço de argumentação contra as crenças no livre-arbítrio. O que surpreende e choca muitos é precisamente a arquitectura determinista, como usualmente se diz, do seu sistema. Uma natureza autoprodutiva, autoregulada, alheia aos valores, que dispensa sacerdotes para a descoberta da verdade, embora se tolerem para as questões de fé.

Foi também por estes caminhos de receio e de ortodoxia, de recusa ou incompreensão, que se estabeleceu e consolidou a fama de um Espinosa ateu, que realmente não o foi no rigor da terminologia. Esta má fama perturbou o próprio Dom Deschamps, que considera Espinosa como tal, e se esforça por livrar-se da mesma acusação. Em boa verdade, fica-se com a convicção de que, dos dois, era Deschamps realmente o ateu.

Pierre Bayle caracterizou, desde logo, Espinosa como « um ateu de sistema ». Situou a crítica na proposição da substância única, que se encontra na base do seu sistema, e passou em seguida a refutá-la. Todos os contornos desta atitude perduraram quase intactos até aos textos de refutação que Dom Deschamps irá redigir décadas mais tarde. É uma autêntica tradição, uma herança. Não é a obra genuína e íntegra do seu autor, não é o tratamento analítico e progressivo dos seus textos, mesmo que em tradução fiável, é uma interpretação, que hoje não recomendaríamos a ninguém, que perdura como uma instituição, uma verdade. Não é Espinosa que circula, é uma outra versão.

 P. Bayle expõe deste modo o pensamento de Espinosa : «saber que Deus é a única substância que existe no universo, e que todos os outros seres são modificações desta substância.» Corresponde quase literalmente àquilo que Deschamps irá transcrever. E Bayle conclui: «uma suposição tão estranha, que subverte a maior parte das noções comuns que servem de regra nas discussões filosóficas; ...é a mais monstruosa hipótese que se possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes do nosso espírito.»

O que está escrito, ficou escrito, a sua crítica e fez-se verdade de escola. Contudo, iríamos mal, se acreditássemos nas aparências do estilo. Pierre Bayle aperfeiçoou um estilo tão hábil que iria ser retomado vezes sem conta pelos bons espíritos do século XVIII. Se o século dezoito tem alguma particularidade em atitudes de interpretação, ela é, seguramente, este estilo fino, penetrante e irónico que Voltaire e Diderot souberam aperfeiçoar a um nível insuperado. Quem ler apressadamente toma a crítica como uma refutação cerrada sem margem para compromissos, quando o que se passa na verdade, é uma hábil estratégia de disssimulação. Os contemporâneos haveriam de saber ler entre linhas, interpretar o elogio sob o disfarce da ironia aparentemente implacável, a verdade sob o manto da retórica. Os tempos iam difíceis, e foram-se agravando adentro do século. Cada um fazia o seu serviço: os chefes da Igreja, os autores de panfletos anónimos, os espiões, os esbirros. Notar-se-á esse estilo, feito de cuidados e alçapões, nos artigos da Enciclopédia, particularmente nesse mestre que foi Diderot. O importante era sacudir a eventual acusação de ateísmo. São as palavras de Bayle, as sucessivas repetições das suas palavras, que atormentam dom Deschamps. Não é que ele receie, pelo menos nas páginas que nunca publicou, defender o ateísmo, mas não deseja na sua consciência “dar o flanco” às críticas consolidadas. Ele próprio admite a consistência destas. Ele próprio se esforçou por “corrigir” o sistema de Espinosa. São estas razões da razão pública e privada, que julgamos dever merecer a nossa atenção. Tentaremos estabelecer, até ao termo desta dissertação, que dom Deschamps se apresenta tal qual ele se confessa: um profeta iluminado por um “ateísmo esclarecido”, e que o seu sistema somente se compreende completamente à luz do espinosismo. Isto é, a metafísica de dom Deschamps, em pleno século, não se confronta com mais nenhuma outra metafísica, se não com a sombra de Espinosa. Forjaram-se outras e novas metafísicas, envolvidas por um naturalismo deísta, como a de Jean-Baptiste Robinet por exemplo (onde, aliás, se perfilam sinais da presença de espinosismo), mas aquela que poderia ser, do mesmo modo, classificada como a “mais monstruosa hipótese” e a mais absurda, seria a de dom Deschamps, se tivesse sido publicada na íntegra. Ele tinha consciência disso, e verificou-o nos encontros que teve com os mais diversos interlocutores. No entanto, não são de somenos importância as suas diferenças com as  ideias expostas pelo próprio Espinosa.

Aquilo que o célebre P. Bayle ensinou a quem o quis entender, foi um método de raciocinar sobre ideias próprias e ideias de outros. O seu mérito não reside apenas nas informações que prestou aos iniciados, mas, sobretudo, na atitude pedagógica exigente de acreditarmos somente naquilo que a razão demonstra e esclarece. Se houvesse que escolher um pioneiro das Luzes francesas, escolhê-lo-íamos. Foi este o legado que Deschamps recolheu, e não os insultos, os gracejos, alguma ironia fácil, em que outros, bem mais do que Bayle, se comprazeram. Pensar no interior do sistema a refutar, não de fora, detectar-lhe as fragilidades, ambiguidades, contradições, eis o essencial. E importa considerar que Deschamps não foi seguidor, de modo algum do nominalismo de P. Bayle. Talvez por isso, pôde assimilar melhor a ontologia de Espinosa. Uma determinada forma de Bayle ser materialista, à maneira de Gassendi, restringia-lhe a ideia de extensão à realidade divisível, bem diferente da extensão abstracta e indivisível de que fala Espinosa, que categoriza esta como um atributo da substância infinita. Iremos verificar que efeitos produzirá esta leitura redutora sobre as soluções de Deschamps, originais mas não tanto como ele julga. Para Bayle, o sistema de Espinosa encerra um problema da unicidade da substância; daí deriva a sua objecção segundo a qual Espinosa tenta evitar a ideia refutável de um ser composto, substituindo a palavra “parte” pela palavra “modificação”. Estas aparentes fugas e contradições de Espinosa, serão encaradas por Deschamps como reais, o qual utiliza ambos os termos: partes e modificações, mas aplicáveis apenas ao todo físico e material, destacando, por isso mesmo, um outro todo “absolutamente absoluto”: o infinito. Ao julgar que refuta Espinosa e, ao mesmo tempo, descobre a solução melhor, atravessa para a outra margem através da ponte que o próprio Espinosa construiu. A solução está longe de ser a mesma, mas a diferenciação dos atributos encontra-se lá. O TUDO (Tout) é toda a Existência. Não equivale liminarmente à soma das modificações, mas, pelo contrário, à outra perspectiva com que se deve encarar a totalidade ordenada dos seres.

 

Condillac refere Espinosa no seu Traité des systèmes. O abade Condillac exerceu uma enorme influência nos rumos novos do pensamento, em particular nos philosophes, num novo exercício do pensar, que valoriza a experiência sensível e apouca as metafísicas de sistema. É todo um nominalismo que está em marcha. Nesta nova atitude, o sistema de Espinosa é um alvo especial da crítica das noções abstractas, sem fundamento na experiência, produtos da imaginação. De uma banda, os teólogos, de outra, os sensualistas, a perseguir os passos do empirismo inglês. Contudo, o ponto de vista dos últimos é mais ajustado, independentemente de ser ou não mais verdadeiro, queremos dizer que é uma crítica legítima vinda de quem leu seguramente o próprio autor. Condillac traduziu a primeira parte da ÉTICA. Aqui o trazemos para fornecer um elemento mais ao cenário ou ao meio no qual se movimenta o nosso beneditino.

Este panorama dá-nos a sensação de que Espinosa constitui um dos mais fascinantes enigmas da história das ideias no ocidente, que nos abala certezas cómodas que tivéssemos sobre uma pretensa autonomia integral das ideias relativamente aos outros fenómenos da vida colectiva. Um filósofo que todos julgam conhecer, e pouco ou nada conhecem em grande parte dos casos, cujas teses circulam o mais das vezes clandestinamente, que, em rigor, não são dele, que parece estar presente nas, ou sob, as novas concepções de naturalistas e materialistas, mas que quase nenhum assume. Surpreendente.

   A influência do espinosismo conservou-se por essa Europa fora, mesmo que truncado e reduzido a uma caricatura, para se assistir, por fim, ao seu renascimento no termo já do século dezoito na Alemanha de Jacobi. É um longo e largo percurso que não podemos resumir neste capítulo. O que importa é adiantar para o nosso projecto este dado que é talvez mais uma interrogação : se admitirmos, como nós admitimos, que uma determinada corrente do materialismo francês do Século XVIII, encabeçada sobretudo por d’Holbach, levou a cabo uma separação relativamente ao espinosismo, sendo que esse corte lhe permitiu apoiar o ateísmo em bases materialistas, não abandonando a tese de uma substância única com diversos atributos ou propriedades gerais, não teria este acto propiciado uma leitura de um Espinosa não ateu? Não é esta leitura que iremos encontrar na filosofia alemã? E, enfim seria esta interpretação mais conforme ao rigor do Texto espinosano, ou assistimos, ao invés, a novas deturpações?

Seja como for, o que nos compete, neste trabalho, é demonstrar que dom Deschamps não tentou recuperar o “teísmo” de Espinosa; bem pelo contrário, tendo-o tomado definitivamente como um ateu, tratou de construir um “ateísmo esclarecido”. Entre o seu propósito e o de d’Holbach, ou de Diderot, não existem aqui divergências de fundo. As divergências são outras.

Em seguida, ensaiamos um breve resumo daquelas teses de Espinosa que mais úteis nos sejam para compreender as teses de dom Deschamps. A intenção é, agora, não um espinosismo de segunda ou terceira mão, mas tentar expor com o rigor que nos é possível as ideias principais contidas na ÉTICA.

 

 

 

1.2. Apresentação breve das ideias de Espinosa

 

Tem, por conseguinte, como objectivo esta exposição resumida da filosofia de Bento Espinosa clarificar aquelas teses e aqueles conceitos que mais se adequam ao nosso propósito de estabelecermos um paralelismo com O Verdadeiro Sistema, de dom Deschamps, de modo a que as semelhanças, e também naturalmente as diferenças, ganhem relevo demonstrativo. Evidentemente que qualquer exposição denuncia o ponto de vista de quem expõe, ainda que se baseie nos textos e na correspondência do Autor, tanto mais quando se trata de um Autor, como Espinosa, tão despojado de retórica autoreferente. Expomos, portanto, a nossa interpretação não tanto daquilo que Espinosa tinha em mente, mas segundo aquilo que ele efectivamente escreveu. Assim se evidenciarão, porventura, os acertos e desacertos da Refutação que dom Deschamps lhe dirige, ora porque pressupõe o conhecimento directo da obra, ora porque falha na medida em que simplesmente refuta um Espinosa deturpado.

O seu autor foi alguém que quis fazer da sua vida um projecto de máxima liberdade, sabendo que nunca a alcançaria nas condições que os outros a determinam, e desejou partilhar esse projecto connosco, sem impor, argumentando, definindo, analisando, desmontando muito daquilo que em nós julgamos mais sólido. Lutou por uma sociedade democrática, onde se pode pensar e dizer o mais livremente que ele julgava possível, mas percebeu perfeitamente que esta sociedade só é melhor porque se permite um pensamento mais liberto do simples obedecer – obedecer ao Estado, às regras consensuais-, muito embora viver em sociedade significa, quer queiramos quer não, obedecer a regras convencionais. As noções de mal e bem, de mérito e demérito, etc., exprimem isso mesmo : simples ou complexas regras, respeito, piedade, obediência, pois que todas estas noções adequam-se melhor ou pior à natureza humana e aos fins sociais historicamente determinados.

A vida de Espinosa é uma imagem positiva de afirmação e de amor à vida, que identifica com a alegria. Realizou uma crítica implacável das atitudes que nutrem ódio à vida, que se rodeiam de cultos da morte, do homem envergonhado, culpado, arrependido, invejoso, ressentido, que sufoca a vida com leis, propriedades, deveres, impérios, às quais Espinosa chama “traições” à vida, ao universo. O que há de pior no homem? A invenção da morte interior, esse universo sado-masoquista do escravo-tirano. Quanto de semelhante encontramos em dom Deschamps!

 

Qual é a tese teórica central do espinosismo? Acreditamos ser esta: há uma só substância que possui uma infinidade de atributos, Deus sive natura, sendo todos os seres apenas modos destes atributos ou modificações desta substância. Embora os atributos sejam infinitos, a inteligência limitada do homem só pode alcançar dois: a extensão e o pensamento. E mesmo aqui, não conhece tudo, e é pouco até o que conhece. Esforçar-se por conhecer é, portanto, uma paixão alegre, positiva. Unir-se ao todo, perceber o encadeamento de todas as coisas, das causas e dos efeitos, totalidade na qual tudo tem uma razão, um nexo, uma necessidade imanente. Assim sendo, é rejeitada a existência efectiva de qualquer entidade transcendente criadora e justiceira, remetem-se estas fantasmagorias para o império do desejo e da imaginação, da mecânica psicológica do medo e da servidão. Unicidade da substância, univocidade dos atributos, imanência absoluta, identidade entre o material e o pensamento (dois atributos distintos e paralelos da mesma substância). Como não ver aqui a tese de que tudo que existe é natureza, sendo o pensamento uma dimensão, gozando de autonomia, da mesma e única natureza? Espinosa passa páginas e páginas a recusar qualquer verdade objectiva a um Deus antropomórfico, à criação extra-natura, ao finalismo moral, ao dualismo, à transcendência. Como chegar, porém, a ser consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, quando a nossa consciência parece inseparável das ilusões?

Como conseguir formar ideias adequadas, promotoras de sentimentos activos, positivos, quando parecemos condenados, pela nossa limitada natureza, a não ter senão ideias inadequadas?

Absoluta é só a substância una e única, infinitos, mas não absolutos, são os seus atributos (infinitos no seu género); Deus exprime a potência absoluta de existir e de agir, a potência absoluta de pensar e de compreender – duas potências do absoluto que são iguais e não se confundem com os atributos que conhecemos.

 

A acepção do conceito de Razão, em Espinosa, tem ocupado muitos comentadores. De entre muitos, preferimos seguir a análise desenvolvida por Maria Luísa Ribeiro Ferreira.  A “razão abrangente”, a “razão constitutiva”, e citamos a autora, “sobreleva a representacional pois a categoria da representação é desvalorizada em detrimento da identificação, da sintonia com o Todo” A razão, para Espinosa, possui uma dimensão ontológica, é fundamento e causa.

Além destas acepções espinosanas da razão, esta é ainda um modo da acção dos homens. “Mas, a verdadeira capacidade de agir do homem, ou seja, a sua virtude é a própria Razão (pela proposição 3 da Parte III), que o homem contempla clara e distintamente”

Em dom Deschamps o termo “Razão” é utilizado como equivalente a “Entendimento”, que é superior à mera “inteligência” comum. Tal faculdade, do Entendimento, é plenamente potente, como se evidencia no título do sistema do beneditino : “O Verdadeiro Sistema”, ou seja, “A Verdade”. A Razão, que exprime a unidade do todo, exprime a outra dimensão do todo : o Tudo que é a Existência. Não existem sinais em dom Deschamps de que utilize a distinção espinosana entre razão e entendimento : no livro IV da ÈTICA, o entendimento é identificado com a razão “Por conseguinte é sumamente útil aperfeiçoar o entendimento ou a razão tanto quanto pudermos”;  porém, no livro II, diz o seguinte : “De tudo o que acima foi dito, resulta claramente que nós temos muitas percepções e formamos noções universais : 1º Das coisas singulares que os sentidos representam mutiladas, confusas e sem ordem à inteligência ; por esta razão, tomei o hábito de chamar a essas percepções conhecimento pela experiência vaga.

2º Dos sinais, por exemplo, do facto de termos ouvido ou lido certas palavras, nos redordamos das coisas e delas formamos ideias semelhantes àquelas pelas quais imagibnamos as coisas. Para o futuro, chamarei a essas duas maneiras de considerar as coisas : conhecimento do primeiro género, opinião ou imaginação.

3º Finalmente, do facto de termos noções comuns e ideias adequadas das propriedades das coisas. A este género, darei o nome de Razão e conhecimento do segundo género.

Além destes dois géneros de conhecimento, há ainda um terceiro como o mostrarei a seguir, a que chamaremos ciência intuitiva. Este género de conhecimento procede da ideia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para o conhecimento adequado da essência das coisas”.

Muito embora dom Deschamps não persiga linearmente as formulações de Espinosa, ele forjou um par de categorias com um papel decisivo no seu sistema: Tudo (Tout) e O Todo (Le Tout), ou, por equivalência, o Nada (Le Rien) e o universo; porém, a realidade última e verdadeira, o absolutamente absoluto como ele escreve por vezes, é a Existência; ora, a Existência é única. No primeiro caso, no par de contrários, temos um primeiro momento do desenvolvimento da verdade; mas esta distinção tem que ser superada, isto é, a negação envolve a identidade. A Existência é, ao mesmo tempo, uma coisa e o seu contrário.  Este é um dos eixos principais da nossa dissertação. Esta posição filosófica é monista; apenas numa leitura superficial pode sugerir um dualismo. A Existência possui dois atributos ao alcance da nossa compreensão humana: ora como natureza-mundo, ora como nadificação absoluta. È a fórmula de Espinosa? Claro que não, de modo algum. E, no entanto, é um monismo sem sombra de dúvidas, como se irá demonstrar nas muitas páginas desta dissertação. Fala-se de uma realidade única, que pode ser encarada de duas maneiras. No contexto filosófico e cultural em que se move dom Deschamps, isto que fica dito, evoca necessariamente o espectro do espinosismo.

 

Que é o atributo, para Espinosa? É aquilo que o entendimento percebe da substância como constituindo a sua essência; não é uma maneira de ver entre outras possíveis, uma perspectiva, mas aquilo que é. Nem é, tão pouco, uma “emanação” da substância, pois que esta não é superior aos seus atributos. Cada atributo exprime uma determinada “essência”. Nem sequer o atributo reside no entendimento (não pertence ao reino dos produtos sociais da consciência); o atributo exprime-se e isto implica necessariamente um entendimento que o perceba ( tudo é natureza, tudo é, em essência, o mesmo)..

  Nós apenas conhecemos dois atributos, e entretanto sabemos que existe uma infinidade. E porque sabemos? Sabemo-lo porque resulta necessariamente da definição de infinito, da definição de uma substância autoprodutiva. Apenas conhecemos dois porque só podemos conceber como infinitas as qualidades que envolvem a nossa essência: o pensamento e a extensão, enquanto somos espírito e corpo.

   Sabemos que há uma infinidade de atributos, porque Deus é ele mesmo uma potência absolutamente infinita de existir, que não se deixa esgotar nem pelo pensamento nem pela extensão.

A natureza é “natura naturans” e “natura naturata”. Como natureza “naturans ”, é substância, ou Deus. É eterna, e infinita, causa e efeito, essência e existência. Nesta “essência” há, ou julgamos ver, um feixe (infinito?) de possibilidades, algo que nos obriga a evocar o conceito de “potencialidade”, em Aristóteles, conceito tão rico que hoje abre caminho de novo entre as ciências. Não transparece uma imagem fechada do mundo e da vida, mas perfila-se um largo horizonte de possíveis e de mudanças.

E há uma diferença entre essência e existência: nas coisas separadas, passageiras e finitas, a essência não coincide com a sua existência, mas na substância única, eterna e infinita, desprende-se necessariamente da sua essência a sua existência.

Por isso a existência de Deus (ou da substância) pode ser demonstrada, isto é, deduzida do conceito de essência de Deus (a natureza).

O ser da substância é, ao mesmo tempo, necessário e livre, já que não existe causa alguma que mova a substância à acção que não seja da sua própria essência. A imagem de uma racionalidade livre e socialmente ética revela-nos a imagem de um Deus livre, e não um Deus determinado a agir por fatalidade: um tal comportamento corresponde melhor a máquinas e a servos.

A coisa individual não se desprende da substância como de sua causa próxima. Só pode derivar de outra coisa finita. Por isso, não possui liberdade absoluta.

 

Os modos constituem o conjunto das coisas finitas; modo é aquilo que não existe por si mesmo, mas sim em outro, ou por outro. A substância é única, a sua essência exclui toda a pluralidade. Pelo contrário, os modos são infinitos. Pontos de uma recta. A natureza, como substância, existe em si mesma, por si mesma, com todas as suas propriedades, com independência e à margem da mente. A mente infinita poderia captar a substância – em todos os seus tipos e aspectos- como infinita. A nossa mente, porém, não é infinita. Por essa razão percebe a essência da substância como infinita somente em dois sentidos : primeiro, como extensão, e, segundo, como pensamento.

O homem, como objecto do conhecimento, não constitui excepção alguma na estrutura geral do mundo. Tudo que é humano, pode submeter-se à análise tal como qualquer outro fenómeno da natureza.

Daqui, Espinosa arranca para a ética. Ciência que deduz as suas normas das leis objectivas dos actos humanos, e não de valorações subjectivas. Naturaliza a ética, ao mesmo tempo que a “socializa”.

 Foi, Bento Espinosa, um pioneiro entre os pioneiros, porque tratou a psicologia dos actos humanos como um físico estuda os fenómenos, buscando leis, ou seja, regularidades, reduções ao mais simples e fundamental, à “mecânica” (não no sentido pejorativo, mas antes naquele sentido de “mecanismos” de que falou S. Freud) das paixões ou afectos. Sublinhava com ênfase dois tipos : alegria e tristeza. Qual a sua causa? A tendência de todas as coisas a conservar a sua existência. Não nos guiamos sobretudo pela atracção do bem, nem pela rejeição do mal, mas sim pela tendência à autoconservação e ao benefício próprio. A virtude é exclusivamente potência humana, e esta é determinada somente pelo esforço com que o homem deseja conservar a sua existência. Nega a independência da vontade relativamente aos seus motivos, a nossa natureza é necessariamente dependente das paixões e dos afectos.

 A coisa que existe necessariamente (ou é determinada) pode, ao mesmo tempo, ser livre se existe por necessidade somente da sua própria natureza. Neste sentido, é livre, em primeiro lugar, a substância Natureza, pois que a sua existência deve-se apenas à sua própria essência. Em segundo lugar, neste sentido também é livre o homem, podendo emancipar-se da escravidão, sob determinadas condições. Qualquer afecto pode deixar de ser um estado passivo, quando fazemos uma ideia clara e precisa dele, desde que o conheçamos. A liberdade é, portanto, o conhecimento da necessidade. 

Conhecer não significa abandonar todos os afectos, permitir-se não sofrê-los. Tal como um mau hábito se cura adquirindo um outro hábito mais forte, assim o conhecimento se torna um afecto (afecção). O que é o afecto do amor? A alegria acompanhada pela ideia da sua causa exterior. E um tipo particular de amor, é o amor pelo conhecimento. Estes afectos podem, assim, lutar contra outros e vencê-los. A humanidade do homem é uma conquista, e o homem um campo de batalhas. A nossa exposição faz pressupor em Espinosa uma compreensão dialéctica de cada indivíduo na relação com os outros e consigo mesmo.

A alegria (proporcionada pelo conhecimento, por exemplo) pode, deste modo, conduzir-nos para uma máxima liberdade (rodeando-nos sempre de cautelas, ou de sistemas de alarme) – nem a inocência, nem a ingenuidade, cabem aqui, excepto nas crianças (que, por isso, precisam de protecção e educação). Nesta batalha dos afectos, usamos um espécie de linguagem bélica: repressão, astúcia, cautela, desconfiança. O homem é um ser activo e a vida uma série de actos de dominação/libertação, dependência/autonomia, criação/conservação.

Certamente que podemos considerar o tipo ideal de vida, em Espinosa, demasiado redutor, ou seja, se for lido deste modo: será livre somente o sábio que renunciou à vida material... Contudo, é admirável a coerência da sua vida com o seu pensamento, numa época em que os prazeres materiais eram já abundantes (sobretudo na Holanda progressiva e burguesa), e nada na sua biografia demonstra que ele houvesse aspirado aos negócios pelo seu lado lucrativo e aos rendimentos, contentando-se com uma situação digna mas frugal É irreprimível uma aproximação com o “cauteloso” Descartes, seu contemporâneo, que sempre foi um profundo individualista cioso do seu isolamento e conforto (era frágil de saúde também), pouco dado a cargos e honrarias, a amizades mundanas (que achava que eram perda de tempo e um insulto à inteligência),

A imaginação desempenha um importante papel na conduta humana, no entanto ocupa o último lugar, ou grau, na escala do conhecimento. “Não somos nós quem afirma ou nega algo de uma coisa, mas é ela própria que em nós afirma ou nega algo de si mesma”. “Ela” quem? A alma...Ou seja, a ideia, quando o é (verdadeira), auto afirma-se, pois que a verdade é necessidade, não é por simples vontade ou capricho que escolhemos esta ou aquela como verdadeira, ela é evidente; ou ainda, entendimento e vontade identificam-se no acto de conhecer; é absurdo que alguém diga : essa ideia é verdadeira, mas eu quero que ela seja falsa!. Podemos fugir da luz do dia, mas não eliminá-la. Não temos nós esta experiência de uma verdade que nos persegue porque nos magoa? Quando se sublinha o carácter necessário das coisas (e das causas), perdemos em liberdade?

A descoberta das ideias (ou são elas que nos descobrem a nós?) e a sua expressão, não acontece, no entanto, de fora para dentro, porque elas não são entes, mas actos do entendimento e da vontade; envolvem-se de consciência e de afectos.

São três os géneros de conhecimento, e, a cada um deles, corresponde determinada forma de consciência e determinados afectos. A equivocidade reina no primeiro género, o mais inferior. Aqui, das coisas, temos apenas sinais, ou signos, frágeis indicações, mais atmosféricas que os sinais de trânsito. Na Psicologia contemporânea dizemos ícones, esquemas, estereótipos. Ideias inadequadas e afectos-paixões correspondentes.

O segundo género é composto de noções comuns – ideias gerais. Ainda não são definições, porque estas cabem apenas no terceiro género; nem são princípios, pela mesma razão. O termo “cavalo” não explica, nem expõe a essência do animal ; os termos “amor”, “esperança”, etc. Mas produzem, por associação e analogia, afectos De simpatia ou antipatia. O primeiro género permite a sobrevivência; o segundo a integração e a convivência (obedecer, desejar, conhecer por meio da ciência). Com os dois géneros conseguimos alcançar certezas somente por mediações ; no terceiro,  as ideias impõem-se pela evidência e precisão, por intuição. O método é conhecer pelas causas. A causa adequada é o critério do conhecimento verdadeiro. O conhecimento humano está sempre dependente do conhecimento das causas que produzem os efeitos; só uma mente divina poderia escapar a isto e “ver” o todo de uma só vez...Estamos condenados ao “encadeamento”. Por definição conhecer o efeito é conhecer a causa. A mente é suficientemente potente para vir a compreender que tudo é necessário, isto é, que o que existe foi determinado a existir e a produzir efeitos por meio de uma ligação infinita de causas. Apresenta-nos aqui uma atitude genética : a descrição de um fenómeno passa pela sua explicação.

Os conceitos obedecem, por conseguinte, a uma ordem genética de construção. Ambicionar captar a ordem lógica das coisas, é ambicionar a construção de sínteses; quando são adequadas, constituem o supremo acto da inteligência, e verifica-se nos produtos mais conseguidos dos grandes espíritos. As melhores definições são as que explicam a geração de uma coisa ( disse Hobbes, e Espinosa retoma). Que é um círculo? A rotação de uma recta. Não existem critérios a priori, extrínsecos à verdade e que permitiriam reconhecê-la ; é na medida que conhecemos que os critérios se estabelecem, durante e não antes. Se para forjar o ferro, os homens precisam de um martelo, este só se produz no acto de forjar, e no processo se vai aperfeiçoando. O papel da prática assume assim, em Espinosa, toda a sua importância. Atenção à génese, atenção ao processo, atenção à prática – eis exemplos de teses admiráveis e percursoras. Construir, progredir em acto, exprimir – tudo anúncios carregados de modernidade. Adoptamos esta leitura do pensamento de Espinosa, contra outras. Vemos Espinosa como um artesão, um operário, que foi, usando exemplos extraídos da sua actividade, e não apenas buscados à geometria. Um espantoso espírito, um príncipe dos filósofos, que, todavia (ou por isso mesmo), foi operário-artesão...Manuseando coisas delicadas, polindo, construindo, percebeu que aquilo que melhor define o homem é a produção, e, sem os produtores, não existiria mundo humano. A dignidade do trabalho criador ( mesmo que rotineiro e reprodutivo), a dignidade do trabalhador. Na organização de uma sociedade pacífica, os homens actuam desencadeando paixões positivas que fomentam a unidade do corpo social.

Há afectos que repugnam à razão – como a esperança e o medo, a sobrestima e o despeito, a comiseração, a indignação, a humildade, a tristeza, o arrependimento, o orgulho máximo. Mas há outras, como por exemplo o favor, o contentamento de si, a glória, que a favorecem e cujo exercício robustece as capacidades racionais. Devemos recorrer à imaginação para aumentarmos a potência da mente. A mente é também o poder, e a necessidade, de imaginar aquilo que aumenta a potência de agir do corpo. Ou seja, manipulemos as nossas paixões, e as dos outros, de modo a que as condutas não repugnem demasiado à razão. Valorizemos o conhecimento, mas saibamos que nenhum conhecimento modifica a fragilidade da condição humana, essas naturezas apaixonadas que vêm o melhor mas praticam o mal. Uma paixão só se combate com uma paixão mais forte. A razão não deve criar ilusões excessivas (apaixonadas...) sobre o seu poder de eliminar os afectos; ela própria deve, para melhor combater os piores, transformar-se em paixão, em afecto.

O conhecimento só por si não leva à acção. Espinosa (na ÉTICA) persegue um objectivo muito concreto: a procura da felicidade. Valorização de tudo que nos contenta, daí o valor supremo da alegria, é o desejo de ser feliz que comanda o processo ético. O mal não reside na Natureza, mas na nossa imaginação e nos nossos afectos tristes. O ser, a essência da Natureza é o bem; o ser e o dever ser coincidem.

O desejo diz respeito ao homem, mas está presente em todas as coisas sob a designação de “conatus”. É um esforço universal de perseverança e de resistência, e de apropriação, e é uma determinação da Substância, visto que esta é eminentemente activa. “Potentia” e “conatus” são equivalentes (“potentia sive conatus”). Conservação  e manutenção do ser próprio, eis a essência de cada coisa. Em todo o real circula um desejo e uma afirmação de ser.

Que nos ensina a filosofia? Que a realidade última é infinita, que essa realidade tem de conter necessariamente em si mesma todo o ser. Deus não pode estar fora do mundo.

Relativamente ao método, como iremos verificar também em Deschamps, o que é mais importante não são os dispositivos técnicos da geometria, mas a dedução lógica de proposições extraídas de definições que expressam ideias claras e distintas e de axiomas evidentes por si mesmos. Entre os sistemas do século XVIII francês, naturalmente aqueles que conhecemos, o que mais se aproxima da exposição tipicamente espinosana, é o de dom Deschamps, ainda que ele não use a terminologia das “definições e axiomas”. É verdade que esta diferença, que não é tão acessória como isso, basta para estabelecer diferenças entre os métodos de ambos, contudo nem o método expositivo-demonstrativo, ou dedutivo, de Deschamps é escolástico (como já temos visto referir), nem a diferença mexe com o rigor lógico. De resto, dom Deschamps afirma amiúde a necessidade de se estabelecer um bom “princípio”, e quando critica os outros, o próprio Espinosa incluído, é o “princípio” deles, ou a sua ausência.

Relativamente à substância divina, em Espinosa, ela deve ser considerada como anterior tanto na ordem ontológica como na ordem das ideias. Em Deschamps assiste-se à anterioridade da categoria Tout. A Existência determina o nosso pensar, a nossa existência natural, a nossa linguagem, mesmo a mais comum. Quando dizemos sim e não, já intuimos o carácter contraditório da Existência. Pensamos nela porque existimos. Somos infelizes porque não a compreendemos.

A substância, para Espinosa, é “causa de si mesma”: explica-se por si mesma e não por meio de uma causa externa; a definição de substância implica, portanto, que a esta é completamente dependente de si mesma, não dependendo de nenhuma causa externa, nem para a sua existência nem para a dos seus atributos e modificações. Dizer tal coisa é dizer que a sua essência compreende a sua existência.

“Por ‘atributo’ entendo aquilo que o entendimento percebe como constituindo a essência de uma substância.” Por conseguinte, segue-se que, se duas substâncias possuíssem os mesmos atributos, possuiriam a mesma essência ; nesse caso não haveria razão para falar delas como “duas”, porque não poderíamos distingui-las. Porém, se não pode haver duas ou mais substâncias que possuam o mesmo atributo, a substância não pode ser limitada ou finita. Tem, pois, que ser infinita. Situamo-nos no âmago da Refutação do princípio de Espinosa, redigida por Deschamps, e que iremos abordar com minúcia.

A substância infinita tem que possuir infinitos atributos. “Quanta mais realidade ou ser possui uma coisa, tantos mais atributos terá.”  Cada atributo expressa uma essência eterna e infinita.

Em Espinosa, Deus não se distingue da natureza; se se distinguisse, se existem outras substâncias que não fossem Deus, Deus não seria infinito.

Em Deschamps, aquilo que ele denomina Deus-não criador (Tout) distingue-se de Deus-criador (Le Tout)? É por isso que ele fala em “dois seres”, refutando Espinosa? Ou, de facto, Deus-criador e Deus-não criador não são mais do que as duas perspectivas com que podemos falar da Existência? Esta é a questão.

 

Os conceitos e as questões que mais aproximam dom Deschamps de Espinosa, parecem-nos ser o lugar determinante do conceito de natureza, de uma natureza dotada de uma ordem racional e necessária; uma concepção da totalidade contendo simultaneamente uma dimensão ontológica e gnosiológica; a adequação, ou não - ou o acordo- do corpo e da mente e de cada corpo com os demais, com esse todo; os dois atributos do todo: o infinito-eternidade e o finito-duração; os três géneros de conhecimento e, evidentemente, a possibilidade de transportar o conhecimento da substância única para uma radical reorientação da nossa existência.

Pelo contrário, a crítica radical da civilização e a consequente utopia da vida campesina, o mais absoluto igualitarismo que dissolve a individualidade, em Deschamps, parecem-nos distantes do pensamento espinosano; um projecto marcado pela especificidade histórica de uma sociedade e de uma época e, naturalmente, pela biografia concreta do monge filósofo.

Torna-se muito difícil aceitar que Deschamps fosse de todo insensível à personalidade e ao modo de vida de Espinosa: como é possível que não tenha visto nele um homem bom e sábio, cujas virtudes e modo de existência tanto se aproximam das virtudes que ele próprio, dom Deschamps, aconselha antes do estabelecimento da sociedade ideal - o estado de costumes -, e que serão, afinal, traços fortes e colectivos da moralidade que vingará nessa sociedade do porvir? Como não admitir que a salvação e a beatitude de que fala Espinosa não ecoam estridentemente no sistema de vida salvífico de dom Deschamps?

Além disso, Espinosa foi um perseguido pelos poderes dominantes, pelo dogmatismo e atté fanatismo religiosos, foi um excluído em vida e depois da morte. Espinosa teve de usar de cautela e os seus discípulos recorreram ao disfarce para transmitir as suas ideias, parecendo que as censuravam. É verdadeiramente improvável que tudo isto não tivesse Crítica da Razão Consensual

Espinosa, Dom Deschamps, Os Materialismos, as Luzes

Explicação

Biografia de Bento Espinosa

Biografia de Dom Deschamps

 

Deste modo, ao identificarmos um dos alvos mais relevantes da crítica de Deschamps, temos de nos confrontar com uma tarefa decisiva, a saber: professava Deschamps, afinal de contas, um materialismo filosófico, ou não? Regra geral os comentadores do século vinte classificam dom Deschamps como materialista.

Começamos pelo fim: Deschamps professava um materialismo metafísico que se julgava a si próprio acabado e consequente. Por conseguinte, respeitando os propósitos desta dissertação, afirmamos que Deschamps efetuou uma interpretação materialista do sistema de Espinosa porque o sistema nos seus Princípios e no seu todo congruente o permite.

 O materialismo de Espinosa não está consensualmente estabelecido. Sabe-se que Espinosa não se comprometeu com as correntes materialistas do seu tempo, sobretudo com aqueles que eram classificados como libertinos. Mas sabe-se também como a sua meditação desenvolveu-se no confronto com a dimensão mecanicista do pensamento de Hobbes e de Descartes, na revisitação do atomismo clássico, e não desprezou seguramente a importância de Gassendi.

No interior das correntes marxistas, correu com força dominante a classificação de Espinosa como um filósofo materialista ou, pelo menos, que continha uma clara vertente materialista. É isso que se lê numa obra que circulou amplamente, da responsabilidade de três académicos da ex-URSS, respeitados internacionalmente ( Compêndio de História da Filosofia, de Iovchuk-Oizerman-Shchipanov, Montevideo, Ediciones Pueblos Unidos,1969). Toda a exposição do pensamento espinosano apresenta-o, quanto à substância única, quanto aos atributos, como um materialista que avançou sobre o seu tempo, embora não seja classificado aqui como “fundador do materialismo moderno”, como já sucedeu.

Em relação às atitudes perante o Materialismo verifica-se a tendência para tomá-lo como um todo homogéneo, apagando-se a sua diversidade, as intensas polémicas internas, a sua evolução. É unilateral uma investigação que, embora constate e realce as diferenças entre Espinosa e os libertinos no século XVII, não exprima, todavia, as intenções comuns, e faça outro tanto no século seguinte, entre o materialismo de Diderot e de d’Holbach. De resto os termos “materialismo” e “idealismo” só vieram a ser cunhados nos finais do século dezassete (embora Henry More já houvesse utilizado o termo “materialista”). “Materialista” foi sempre o epíteto dirigido ao adversário, com mais ou menos preconceito e acinte, e de tal modo é assim que somos levados a encarar o materialismo como o “outro”, o negativo, marginal e silenciado. Em 1674 Robert Boyle, o célebre cientista, classificava como “materialistas” aqueles que não tinham em conta o movimento da matéria; esta atitude redutora, comum a outros, revela a associação que ainda se fazia entre o “atomismo” antigo e as correntes materialistas posteriores, embora a opinião de More fosse mais fina e menos “aristotélica”. O materialismo, numa perspectiva fundada da história das ideias, aparece quase sempre como uma filosofia escandalosa, que professa uma “moral para brutos”, se não mesmo imoral, daí que fosse perseguida, desacreditada, deturpada. Como discurso-outro que se via deste modo a si mesmo, exprimiu-se normalmente como um discurso reactivo, de oposição, reconhecendo-se por meio dos seus adversários, muitas vezes impiedosos, e evoluindo através dessa mediação. Este movimento e relação dialécticos são incontornáveis se queremos entender a história das duas correntes principais da filosofia. Vemos como o combate contra o Espinosa e o espinosismo não se dissociava da repulsa pelo materialismo em geral. As teses do monismo e da unidade material do mundo desafiavam uma longa e poderosa tradição, hábitos e valores. E não é por acaso que tendemos a encarar o Tratado Teológico-Político, de Espinosa, como um Prefácio da Ética. A separação das águas passava pela questão religiosa, mas, enquanto muitos digladiavam-se no interior dela, os materialistas do século dezassete redigiam tratados de tolerância ou mesmo claramente ateístas.

Se admitirmos a opinião estabelecida segundo a qual somente a partir do momento em que se estabeleceu uma separação nítida entre a realidade pensante e a realidade não pensante (para Descartes “extensa”), se pode falar de materialismo, nome que conviria, pois, às doutrinas daqueles que afirmam que apenas existe um dos citados tipos de realidade: a realidade material ou material-extensa, torna-se tarefa difícil demonstrar que Espinosa foi um materialista tipificado. O que é certo é que diversos materialistas interpretaram Espinosa da maneira que mais lhes convinha, em alguns casos procederam a rupturas com o espinosismo nos aspectos que consideravam metafísicos, como se verifica com o próprio d’Holbach.

O reconhecimento da matéria como única substância, à qual se vão acrescentando propriedades, algumas das quais haviam sido anteriormente atributos exclusivos de Deus, exprime uma tese fundamental das escolas materialistas. Diversas passagens do Texto espinosano tanto conduzem uns a concluir que o pensamento realiza uma das formas da existência da matéria corporal, como conduz outros a pôr em relevo o paralelismo da alma e do corpo. De resto, pode dizer-se que a tese do paralelismo, as questões da imortalidade da alma, Deus, dos dois atributos, foram sempre temas de intensa polémica e exploradas de modos diversos as ambiguidades, aparentes ou reais.  O espinosismo é um referencial ao qual ninguém seriamente se pode escusar, ou por simpatia mais ou menos dissimulada, ou por repulsa visceral. Daí que os projectos materialistas de La Mettrie, de d’Holbach, de Diderot, por exemplo, tentem resolver as contradições, dissolver ambiguidades, eliminar as teses mais metafísicas, expulsar o próprio nome de Deus e a compleza tese da imortalidade da alma, buscar na evolução da matéria viva a génese do pensamento, em suma, realizar o espinosismo, torná-lo mais consequente. Não foi outro o projecto de Deschamps, embora por caminhos diferentes.

Se ainda hoje perdura a enorme força crítica do Tratado Teológico-Político,  e temos para nós que foi esta a obra que mais influência exerceu ao longo dos séculos dezoito e dezanove, ela contém um marcante exemplo da orientação crítica dos materialismos. Será essa, julgamos nós, a mais visível e eficaz característica da vertente materialista do iluminismo. Distingue-se, porém, esta consciência crítica do criticismo anti-cristão do iluminismo deísta, isto é, não materialista (e até seu irascível adversário). Ao contrário do que julga, e fez julgar, uma tradição dominante até à data, as obras de La Mettrie e d’Holbach não fazem de Deus, da religião e das Igrejas, o seu alvo exclusivo, nem utilizam o tom áspero e chocarreiro com que muitos deístas, eles sim, se pronunciavam sobre esses temas. É por isso que não interpretamos a censura de dom Deschamps em relação àqueles que desprezavam a religião cristã, sem se aperceberem das razões da sua vitalidade e do núcleo recuperável, dirigida apenas ao grupo de d’Holbach, tanto mais porque as referências manifestas que Deschamps faz ao barão, são posteriores à redacção do Verdadeiro Sistema. A profusão de literatura anti-religiosa era suficientemente abundante, e não era toda ela seguramente oriunda da escola materialista. Nada do que dissemos diminui o carácter subversivo das filosofias materialistas, bem pelo contrário. Esse carácter subversivo tanto poderia propor a substituição de um regime político por outro, sem alteração profunda da sua natureza de classe, e assim terá sucedido com as ideias políticas de Espinosa, como transitar para projectos antifeudalistas de emancipação da burguesia, como nos parece ser o caso de importantes espinosistas materialistas do século seguinte (independentemente da sua elevada origem social, o barão d’Holbach advogava a República, coisa de que nunca se atreveu a fazer o grande Voltaire). Dom Deschamps é um caso limite: advoga a dissolução das classes sociais, homogeneizando todos numa massa indistinta de camponeses sem propriedade.

Se a tese fundamental dos materialismos é a de que a unidade do mundo consiste na sua materialidade, então materialistas, embora com ritmos e traços específicos, foram-no La Mettrie, d’Holbach, Diderot, para falar apenas destes. Mas foi-o também dom Deschamps. A “matéria”, vista como noção inserida num sistema de negações e oposições, que é o aspecto geral da história das ideias, é o que se opõe ao pensamento ou ao espírito; é essa realidade que determina o pensamento, é o Ser concebido na sua independência em relação a todo o pensamento. Se utilizarmos a fórmula consabida da oposição materialismo/espiritualismo, o primeiro, opunha-se a uma metafísica que reduzia toda a realidade a um princípio espiritual. Então, neste caso, Deschamps é claramente materialista. Característico daqueles que então se designavam espiritualistas e mais tarde idealistas, era a crença em ideias de finalidade, isto é, numa teleologia; ora, a tese do finalismo, em qualquer das suas formas, foi sempre recusada pelos materialismos, incluindo evidentemente o Verdadeiro Sistema. Em d’Holbach, por exemplo, poderia revelar-se um certo fatalismo (como denunciou o próprio Diderot), apesar disso o famoso barão rejeita insistentemente qualquer finalismo mesmo natural, quanto mais divino. Outro tanto sucedia com a crença numa realidade inteligente e criadora que transcendia a composição física da natureza. Tal entidade, transcendente e criadora, foi recusada por Espinosa e pelos materialistas do século dezoito. A denúncia do antropomorfismo e a crítica firme e decidida contra qualquer forma de transcendência e finalismo natural, identificam a orientação materialista, e os seus adversários sabiam-no muito bem. A finalidade é substituída pela ideia de uma ordem natural e universal, um conceito largo e diversificado que se foi moldando sobre os avanços das ciências, e que constituía, talvez, o tópico mais complicado e obsessivo em autores tão diferentes como La Mettrie, Maupertuis, d’Holbach, Diderot, Deschamps.

Dom Deschamps quando se refere ao “princípio de Espinosa”, que ataca, não se refere ao “princípio materialista”, aquele segundo o qual, parafraseando Leibniz, a matéria tem de assumir, sucessivamente, todas as formas de que é capaz. Este princípio, que estaria contido em Descartes, e que fica mais claro nos métodos de Hobbes e de Espinosa, este princípio assume toda sua clareza nas escolas materialistas do século dezoito. O acto de ruptura com Espinosa, de uma determinada ruptura, da parte da escola de d’Holbach, uma atitude que pretendia abandonar toda a metafísica, situa-se neste lugar preciso. Esta atitude, entendida ou não nesses termos por Deschamps, está na origem das violentas censuras deste (que se manifestam sobretudo nos opúsculos Lettres du siècle, e La Voix de la Raison). A esta luz, faz sentido colocarmos a interrogação tão longe quanto possível: indispôs-se dom Deschamps com o chefe-de-fila dos materialistas por este haver rompido com o espinosismo consequente, isto é, metafísico, o espinosismo que integrou o infinito no monismo e que, assim, tornou este absoluto? Se a resposta for positiva, então perfilar-se-ia como o mais espinosista de todos.

 

Assim como a filosofia de Descartes, que não era materialista, teve efeitos materialistas (no famoso pároco comunista J. Meslier, por exemplo, existem elementos de cartesianismo juntamente com um certo espinosismo), assim Espinosa foi sobremaneira útil para o desenvolvimento do materialismo, bem como Hobbes.

No plano gnosiológico o alvo principal de Deschamps não é o materialismo, mas o empirismo, o sensualismo, durante os anos de redacção do Verdadeiro Sistema; o grupo de d’Holbach, Diderot, o pioneiro La Mettrie, não eram então classificados como discípulos de Locke, ou do abade Condollac, ou do empirismo de Voltaire, ainda que não se mostrassem imunes à influência da filosofia inglesa; a corrente materialista distinguia-se do puro sensualismo, e se atribuíam valor à experiência, não a reduziam à pura experiência sensível.

No plano metafísico o alvo principal é o teísmo e o deísmo. No plano político e moral, passará a ser o materialismo inconsequente que promove uma mera substituição das leis, isto é, as leis ético-políticas vigentes e dominantes por outras, igualmente leis. Dom Deschamps foi amigo de d’Holbach e de Diderot. Amigo que não se coíbe de censurar as soluções e os projectos do círculo de d’Holbach. Outro tanto fez Diderot, cuja obra é muitas vezes “dedicada” a algum amigo, istoé, tem como objectivo a refutação. Este estilo é bem próprio dos filósofos, bons e verdadeiros.

As posições firmes em que Deschamps se apoia nos seus ataques não colidem com teses fundamentais do materialismo. O resultado, todavia, parece algo híbrido; uma estranha ambiguidade mostra-se naquela construção de uma unidade material do mundo –Le Tout – que abre para a inquietante possibilidade de um nada absoluto. No entanto, se encararmos este aparente “nulismo” como realmente aquilo que o próprio autor formula, como o infinito e a eternidade, talvez então compreendamos a intenção ética da construção. O nada não é um transcendente criador (se evoca alguma coisa é um transcendental kantiano), mas, apesar disso, produz valores, isto é, configura a única atitude sábia perante o mundo e a vida. Face ao “grande todo” (expressão comum aos materialistas e até aos naturalistas), ao “ser supremo” (a Natureza), cada um de nós é insignificante, as nossas paixões valem nada. Por conseguinte, o que importa é mudar de vida. Dom Deschamps assimila a mais perene lição de existência, que percorre o estoicismo e o cristianismo. Nele, porém, é um Mundo, sem Alma é certo, e também sem Deus. «Deus está morto», a bem dizer, para dom Deschamps. Não mais funda os valores. Os valores que servia para fundar, ou legitimar, estão definitivamente obsoletos. Esta atitude prevalece nos materialistas, e é até o leit-motiv deles.

Em Deschamps, tal como em Espinosa, a substância não é o princípio dos seus atributos, estes é que a exprimem cada um segundo o seu género.  A correspondência estrita entre Le Tout e Tout, a sua unidade contraditória, que serve para os distinguir no seu género, sem recurso a qualquer entidade exterior e superior, evoca o chamado paralelismo espinosano. O homem, “parte” do todo, ser movediço entre o mais e o menos, ligado a todos os seres pela sua absoluta natureza, é um reflexo desse “modo finito” espinosano, no meio do conjunto dos modos finitos; tal como em Espinosa, o homem não é “um império dentro de um império” e tudo que ele projecta sobre seres divinos, não são mais do que puras ficções antropomórficas. Jamais se poderá libertar da ordem da natureza, conhecê-la e obedecer-lhe é que constitui uma livre existência. Certamente que deduzimos ideias muito semelhantes em materialistas como d’Holbach (e não será essa sua dívida maior para com o espinosismo?) e Diderot, mas nunca como em Deschamps essa mensagem foi tão afirmativa, coerente e proclamatória. A sua utopia atesta-o .Dom Deschamps, neste sentido, foi sem dúvida o mais consequente espinosista do século dezoito francês, senão na unicidade unívoca, pelo menos nas consequências.

O materialismo do século recolhe o legado libertino visando o Deus criador e a alma imortal, argumentação a que não foi imune o próprio Espinosa. Dom Deschamps e d’Holbach, este que parece ser um inimigo fidagal, estão mais unidos do que parece, une-os posições-chave comuns: a oposição tanto à teologia como ao deísmo, e ambos expõem uma ordem da natureza que não prova a existência de Deus, bem pelo contrário, dispensa-a.. A imortalidade da alma é por ambos liminarmente rejeitada. A ideia de que a natureza possui um dinamismo próprio, um princípio de auto-organização, que comunga com as concepções vitalistas que se desenvolviam por essa altura, e que aos materialistas muito deve, é comum a ambos, embora com tonalidades diferenciadas.

  Estamos convictos que o Système de la nature, de d’Holbach, pretendeu fundar o ateísmo sobre uma filosofia materialista, o mais conforme às teorias científicas que a época permitia; reconhecendo nele, muito embora, manifestas incorrecções que não escaparam ao ponto de vista crítico de Diderot, o determinismo do Système de la nature não colidia com orientação que caracterizou a ciência durante um longo período, sendo ela mesma determinista; não se compreende, portanto, que se continue a desprezar o sistema de d’Holbach, seja pelo seu determinismo, seja pelo seu ateísmo que não se limita a negar a existência de Deus e a arremessar dardos contra a religião, mas, bem pelo contrário, representa um admirável projecto da cultura ocidental, que remonta a Epicuro. Um historiador probo da filosofia e da ciência não pode ignorar as suas produções. Apesar das sua análise do iluminismo em geral e do materialismo em particular demasiado redutora, e até, por vezes, incompreensivelmente pouco justa, o mais eminente historiador das ideias, Hegel, soube escolher d’Holbach como o materialista mais representativo do século de que ele fez o balanço.

Ora, a verdade é que o sistema de Deschamps insere-se no mesmo projecto. E a outra verdade que procuramos demonstrar é que os dois sistemas tinham como referente comum o sistema de Espinosa.

 

Nos cadernos que compõem as Observações Metafísicas, e logo na parte primeira, Deschamps expõe com notável contenção de palavras não só a substância do seu Sistema, mas diversos aspectos parcelares que acabam por ser partes essenciais do sistema, entrosados com admirável coerência. É assim que aí nos remete para os problemas da causa/efeito, do movimento/repouso, de Deus e do Diabo, etc.Tentemos descobrir a presença do espinosismo.

Deus foi fabricado conforme a nossa imagem, como ser físico e como ser moral, mas também como ser metafísico e sobrenatural, a partir de quê? Logicamente, a partir da ideia de Tout e do Tout; durante demasiado tempo sem consciência disso, agora com o auxílio de Deschamps torna-se possível a consciência. A esse Deus emprestamos atributos positivos e negativos. Por conseguinte, o nosso pensar habituou-se mais a um erro do que a uma pura falsidade, não tanto à negação da verdade, mas a um errado exercício do entendimento, que se caracteriza pelo antropomorfismo e por reunir num ser supremo atributos contraditórios. Dando a esse Deus atributos morais, tornámo-lo incompreensível e objecto de fé. Ora, torna-se muito mais compreensível entender Deus como os dois pontos de vista contrários da Existência. A Deus demos os atributos morais positivos, ao Diabo demos os negativos, em lugar de admitirmos que os atributos são realmente opostos mas não são Figuras, pois que se Deus e o Diabo existem é apenas no sentido unicamente de que eles são os dois extremos, ou opostos absolutos, que são o mais e o menos metafísicos, o mais e o menos de perfeição, de ordem, de bem, de realidade, de igualdade, de união, de beleza, de movimento, etc., menos que, em relação ao bem, por exemplo; é o que nós apelidamos o mal, porque o mal é o oposto do bem e não a sua negação, dado que se diz mais ou menos de mal, como mais ou menos de bem. O bem e o mal são uma espécie de “noções comuns”, que não são realidades naturais, mas traduzem, no entanto, a realidade dos opostos; na medida em que o Todo natural é composto de opostos, ou seja, de relações, o nosso pensamento, mesmo o mais comum, exerce-se por oposições. Os elementos opostos não representam, de modo algum, entes, coisas ou substâncias, isto é, não existem “seres” bons ou maus em si mesmos, o que existe é um denominador comum, uma unidade, o bom vale tanto para a natureza como o mau, tanto necessita daquilo que chamamos bom, como daquilo que chamamos mau. Esta concepção da Natureza, tão vincada nos materialistas, e em Deschamps, revela bem a presença do espinosismo.

O Todo – a Natureza -, é simultaneamente a primeira causa e o primeiro efeito, causa e efeito metafísicos donde derivam as causas e os efeitos físicos. Sempre nos habituámos a pensar que os seres são efeitos do Ser, ou suas criaturas, mas jamais pensámos que o Ser é o efeito dos seres, ou sua criatura; ora, esta verdade que arruina radicalmente a base do nosso pensar, afasta liminarmente a crença de que os seres são criaturas de um ser que os cria, mas que é incriado. A causa e o efeito são duas coisas relativas que só podem ser uma pela outra.

Estas teses mostram com clareza bastante que Deschamps utiliza habilmente o papel da dialéctica espinosana, expressa no princípio de que toda a determinação é negação. E, embora de maneira muito própria, estabelece a impossibilidade lógica da existência de um ser incriado mas criador, uma causa sem causa. As teses de Espinosa, particularmente a da causalidade imanente, são respeitadas.

Entre todos os seres vivos existe um encadeamento, um entrosamento de causas e dos seus efeitos, de efeitos que são causas, mesmo quando ignoramos a causa de um efeito. É a ignorância, preguiça, que nos leva a imaginar uma primeira causa que não foi causada. Porventura a « primeira causa » foi também causada. Seria mais justo pensarmos que as causas possam ser efeitos dos seus efeitos, do que postularmos um ser que não é causa nem efeito, isto é, que está acima da conexão causa-efeito e que, apesar disso, é criador. Nada é mais espinosista do que isto.

  A primeira causa existe pelo primeiro efeito, como o primeiro efeito pela primeira causa. É da essência, ou da existência, de qualquer causa ser efeito de outras causas, como é de todo o efeito ser causa de outros efeitos. Se assim não fosse, não haveria razão alguma para existirem, pois que a primeira causa só pode ser primeira causa pelo primeiro efeito, e o primeiro efeito pela primeira causa. O que faz a sua existência é a relação entre elas. Esta lógica não surpreende tanto quanto isso num tempo em que a biologia, por exemplo, ainda procedia de modo especulativo, com excepção de raros casos. O que realçamos é a utilização em Deschamps de uma argumentação lógica que pretende ir mais além, senão mesmo contra, a lógica marcada paradigmaticamente pelos newtonianos, a qual encerrava o encadeamento dos raciocínios numa primeira causa, isto é, num Deus criador, arquitecto ou relojoeiro. Uma causa não produzida, uma causa que não de modo nenhum efeito, implica contradição. O que é causa sob um ponto de vista é necessariamente efeito sob outro, e o que é efeito é necessariamente causa. A causa primeira é o primeiro efeito, e o primeiro efeito a causa primeira, e tudo o que deriva daí é mais ou menos efeito do seu efeito, mais ou menos causa da sua causa. «porque é um princípio de toda a verdade que não existe nada no Le Tout que não seja mais ou menos relativamente a uma outra coisa o que esta outra coisa é mais ou menos relativamente a ela (...) é Le Tout, então, que é causa e efeito das suas partes, e que não é outra coisa senão isso sob todos os pontos de vista opostos sob os quais as possamos considerar, como os de começo e de fim, de bem e de mal, de pleno e de vazio, de extremo passado e de extremo futuro, etc.”

 O começo ou o tempo é uma relação, aplica-se a seres que existem na duração, que são causas e efeitos; sempre existiu o começo ou o tempo; mas da eternidade, considerada negativamente, não dizemos mais ou menos eterna. O tempo existe na, ou para toda a eternidade, mas dura mais ou menos no interior de uma Natureza que é ela mesma submetida ao tempo.

A Terra é o nosso todo, a nossa unidade, o nosso princípio, a nossa primeira causa e é o movimento geral dentro do qual somos transportados; no entanto, por cima dos nossos olhos desenrola-se um vasto todo, o firmamento, mais universal do que este pequeno planeta onde vivemos; não é um todo ainda mais vasto que falta ao nosso olhar, é o nosso olhar que lhe falta. Deschamps prefere utilizar termos como forças “centrífugas” e “centrípetas”, propriedades ambas do Todo, “que é os dois opostos metafísicos”. O pleno e o vazio são apenas o mais e o menos metafísico, assim como o movimento e o repouso. Aspectos diferentes com que observamos o Todo. É O Todo, no qual tudo é mais ou menos cheio e mais ou menos vazio, ou, o que é a mesma coisa, no qual os corpos se unem e se condensam, se desunem e se rarefazem mais ou menos. O vazio não é negação de matéria, isso repugnaria, é o ar encerrado nesta máquina, do qual uma força violenta desuniu as partes rarefazendo-as... Em suma, nem o pleno ou cheio, nem o vazio, são coisas absolutas, mas existem como mais ou menos cheio, mais ou menos vazio. A matéria é que é absoluta, isto é, absolutamente positiva. Que significa «absolutamente positiva»? Significa uma única substância, que não necessita de qualquer outra, e que é «absolutamente» real, natural, física, material.

Erradamente andámos à procura de um primeiro homem, de um começo absoluto para cada espécie, pela ignorância que mostramos ter de que todas as espécies se interpenetram, se encadeiam umas nas outras, e têm como começo o universo, a matéria. Em vez de procurarmos no geral, por via intelectual, procuramos no sensível, no particular, abstraindo, por exemplo, erradamente, a espécie humana das demais. A origem de cada espécie é puramente relativa, todas tiveram a sua origem num primeiro gérmen de todas as espécies. « É a disposição, é a ordem actual que enfeita o mundo que tomamos como objecto, sem o saber, e por isso se diz dele que ele começou e que ele acabará : porque o mundo, ou O Todo, existe sempre o mesmo, muito embora tudo comece e termine nele ;o mundo é o fundamento, a sua disposição e as suas nuances.» . Ou seja, interpretamos erradamente o movimento do mundo quando o encaramos com o aspecto actual, sem que nele entendamos a sua transformação; numa palavra: a sua evolução. Vale a pena reter esta ideia vinda de um pensador dos meados do século dezoito.

Deschamps não entende como « primeiro gérmen” um ser sensível, um organismo singular, mas o “primeiro gérmen metafísico”, isto é, o mais geral de todos os colectivos gerais, O Todo que gerou as primeiras formas de vida. Deschamps elimina a necessidade de um Deus criador. A vida surgiu da matéria.

As espécies modificaram-se, através do tempo, de metamorfose em metamorfose resultaram nas espécies que observamos. «As esopécies sofrem ordinariamente a longo prazo alterações consideráveis, e várias espécies de hoje não se assemelham em nada com aquelas que existiam há cem milhões de anos, embora hajam saído delas». Evidencia-se aqui uma tese sobre a evolução das espécies, destacando-se o papel decisivo que o a longa duração desempenhou neste processo. O tema era apaixonadamente tratado por diversos publicistas e alguns notáveis investigadores, como Maupertuis e Buffon; Robinet havia dado à luz um grosso tratado sobre a natureza. Portanto, a tese de Deschamps alinha com as teses mais avançadas do seu tempo, e por um círculo muito restrito de sábios. Importa pô-las em relevo, tanto mais porque apresentam-se em perfeita congruência com a sua crença materialista.

O necessitarismo do sistema não elimina os possíveis. Não nos parece adequado utilizar com ele a expressão «determinismo», pois que a sua crença não respeita a um universo estático. Como tudo é relativo, o possível também o é: as coisas não são imutáveis. No interior do Todo positivo, actual, muitos são os possíveis. Para a vida do universo cem milhões de anos contam apenas como um instante; em milhares de séculos foi acontecendo tudo o que uma gama larga de possiblidades podem ocasionar, todos os grandes acidentes, seja pelo choque entre globos (planetas, astros) que podem encontrar-se uns aos outros no seu curso, seja pelas erupções que sucedem neles, seja por qualquer outra causa extraordinária; acidentes que destruíram com certeza muitas espécies vivas e até em outros planetas as mesmas que aqui existem. Outros planetas poderão ser habitados por seres nossos semelhantes, porque não?

O impossível é somente aquilo que não é possível para nós, no interior do universo não existe a impossibilidade absoluta.

È porque o homem aspira ao impossível isto é, àquilo que é impossível para as suas forças, que ele tende a ser o centro de todas as coisas, ao antropocentrismo diríamos nós: os seus desejos são os de um deus, o seu poder o de um homem. Quer ser O Todo, quando é somente uma parcela dele. No entanto, uma parcela capaz de aspirar a outros possíveis, como é o caso da própria sociedade utópica de Deschamps, e aos impossíveis, como certas quimeras. Foi também com base nesta aspiração ao impossível que se fundaram as religiões. Deschamps não pretende fundar uma nova, mas fundar uma sociedade que se encontra nos limites do possível. Em rigor, é mesmo a única que respeita a dialéctica da necessidade e da possibilidade da natureza humana.

Os homens são o que são devido à sua “conformação vantajosa”. O termo é utilizado com insistência e definição suficientes para nos levar a admitir que é um conceito, e é um conceito extremamente moderno. Não apenas revela uma concepção materialista, filosoficamente falando, da vida e do mundo, como fornece um dispositivo teórico muito útil para a ciência, ou que seria muito útil se houvesse sido divulgado. Não se encontra nos seus textos matéria suficiente para afirmarmos que ele anunciava quer o lamarckismo, quer o darwinismo, mas o termo e o contexto prepara o caminho. É importante constatar que Deschamps localiza as vantagens do homem tanto nas mãos, como no cérebro. Mãos, cérebro, linguagem. A sua organização em sociedades, outro dado fundamental a ter em conta. Munidos destas vantagens, anteriores a qualquer forma de autoconsciência evoluída, os homens começaram a julgar-se superiores sobre o resto dos animais. A sua superioridade é meramente aparente, isto é, quando muito foi bafejado com uma «conformação vantajosa». Sentindo-se superiores, e ignorando a causa das vantagens, imaginaram possuir uma alma da qual estariam privados os restantes animais. Daí todos os sistemas filosóficos falarem em alma, e todos eles se enredarem em dificuldades insolúveis. Na verdade possuímos uma “alma física e uma alma metafísica”. “A alma física é a vida, é o encadeamento das engrenagens que constituem a máquina do nosso corpo. A alma metafísica, esse ser que sempre se confundiu com a alma física, e do qual sempre se falou tão absurdamente, é aquilo que nós temos de rigorosamente comum com todos os seres, é a própria existência metafísica, “a alma física é apenas um efeito do próprio corpo”. Todos os animais possuem uma alma física. Todas as coisas naturais, dentro de O Todo, possuem sentidos, diversos embora na forma, possuem sentimentos, possuem vida. Estas ideias de Deschamps não repetem concepções a favor de uma “Alma do mundo”, clássicas ou renascentistas; estão, antes, em sintonia, com as correntes naturalistas do seu tempo; não fazem dele um regressivo, mas um moderno; não fazem dele um pensador que despreza a ciência, mas, pelo contrário, um intelectual bem atento e capaz de assimilar de maneira muito pessoal o que somente alguns se atreviam a dizer. Chega a admitir que seres vivos não animais, presumidamente vegetais, poderão possivelmente possuir sentimentos... Os seres inanimados também possuem movimento, ainda que esse movimento não seja por nós percepcionado. Se possuem movimento também hão de possuir alguma sensibilidade. Repare-se que estas ideias são expostas nos primeiros cadernos que ele redigiu, ainda na década de sessenta. Claro que é de considerar que ele haja feito acrescentamentos e revisões. Seja como for, a ideia de uma sensibilidade geral da matéria estava ainda a surgir entre os naturalistas como Buffon, Maupertuis, o filósofo Diderot, e bastante mais tarde, por d’Holbach. É uma concepção que reputamos de enorme importância, porque caracteriza fortemente o naturalismo materialista da época, que serviu para romper com o materialismo mecanicista, que permite a Diderot afirmar que isso distingue os antigos espinosistas do novo espinosismo, conforme ele o diz no famoso artigo da Enciclopédia, e que constitui uma contribuição notável para o avanço das ciências da vida. Dom Deschamps situa-se, portanto, na vanguarda.

Por conseguinte, os vegetais e os animais poderão possuir eventualmente sentimentos, pensamentos e memória, sem semelhanças connosco. “O pensamento, o sentimento e a memória são modificações do movimento”. Estas faculdades nos animais não são distintas do corpo, são o seu efeito. A diferença connosco deve-se a um mais: mais inteligência, mais memória, mais sentimento, e, enfim, autoconsciência. Deschamps é um filósofo ao qual se pode criticar tudo, menos falta de coerência.

Foi, e é, devido à nossa ignorância que somos levados a julgarmo-nos superiores, “vício do nosso estado social, vício nascido da nossa ignorância” que nos leva a excedermo-nos em tudo; a nossa superioridade intelectual, porém, não nos trouxe mais razoabilidade e felicidade em comparação com os animais. Deschamps era monge, mas não se vislumbra aqui nenhuma repetição consabida do franciscanismo, ainda que as lições do respeito pelos animais não estejam esquecidas. A atitude não é a mesma.

Uma outra ideia é de reter: “ O meu eu (le moi) é o todo do meu corpo”, nós podemos distinguir uma ou outra parte do nosso corpo, sentir esta ou aquela, tomar consciência desta ou daquela parte, mas é o nosso corpo, como um todo, que sente, dá conta, toma consciência. Somos um todo, em suma, e é esse todo o meu eu que exprime, que torna possível este eu. A neurologia e a psicologia dos nossos dias não dirá o contrário.

«Temos buscado o homem fora do homem, buscando-o fora da máquina do seu corpo», é esta totalidade orgânica, congruente e funcional, que nos faculta sentimentos e acções. “As nossas ideias, as nossas sensações e os seus objectos são a mesma coisa, não no sentido de que a ideia, por exemplo, que nós fazemos do sol seja o próprio sol, mas no sentido de que ela tem (est) tudo o que o sol é para nós”. É absolutamente tentador aproximarmos estas afirmações dos escritos de Espinosa...

“Ter a sensação de uma coisa, é ser esta coisa proporcionalmente à sensação que dela temos, de maneira que vê-la mais ou vê-la menos, julgá-la mais ou menos (...) é ser mais ou menos essa coisa, e nada mais”. O espinosismo de Deschamps é puxado até ao limite, dentro da coerência de um sistema que não é de todo em todo o sistema de Espinosa. A ideia é esta: somos partes, organizadas, de partes idênticas de que são feitos outros corpos, vegetais, animais e até coisas inorgânicas. A diferença está, sobretudo, na complexidade, na estrutura. A estrutura determina a função. A isto nada pode opor um cientista de hoje, ou seja, que os elementos físicos, químicos, e biológicos, estão disseminados por toda a natureza. Recusando-se um Deus criador e um alma distinta e imortal, estamos mergulhados no mais puro materialismo filosófico. É esta ideia de semelhança entre tudo que permite a Deschamps acreditar na utopia de um naturalismo.

“Se nós pensássemos, apesar do eu aparente que nos distingue dos outros seres, que somos compostos de tudo o que existe de sensível, que nós estamos ligados a tudo, que estamos em unidade com tudo, embora separados de tudo aparentemente, deixaríamos de nos ver como seres inteiramente distintos uns dos outros, e de crer em consequência que nós e os objectos fora de nós, que as nossas sensações e os seus objectos, não são relativamente ao  todo a mesma coisa “ . Não nos deixa qualquer dúvida sobre a formidável coesão e harmonia do mundo. Dom Deschamps, mais do que qualquer outro filósofo do século dezoito francês, tanto quanto sabemos, levou o conceito de «o grande todo», conceito-chave do século, à sua máxima amplitude. Nunca, ou muito raramente, se assiste a um pensamento da totalidade tão metafísico, mais atrevidamente metafísico do que o “grande todo” d’holbachiano, mais ousado até do que os ensaios magníficos de Diderot, ainda que sem o esplendor que adquire nas páginas deste último. Um conceito puramente materialista, ainda que puramente especulativo. Só conhecemos um filósofo maior, que lhe antecede e que o supera na originalidade, na absoluta singularidade com que se levanta até hoje em toda a história da filosofia: Espinosa. E julgamos firmemente que Deschamps tinha disto perfeito conhecimento.

“A necessidade de um acontecimento não pode nunca existir senão depois que ele aconteceu; todo acontecimento é sempre contingente mais ou menos antes que ele suceda (...) seja qual for o modo como ele aconteça para os diferentes testemunhos, ele aconteceu sempre necessariamente quando aconteceu; necessariamente desta maneira para Pedro, e necessariamente doutra maneira para Paulo (...) Pode-se dizer que tudo que aconteceu, acontece necessariamente pela necessidade relativa primeira, porque estava no encadeamento das coisas que ele acontecesse, contudo não é preciso concluir que devemos baixar a cabeça perante o curso das coisas, pois que depende de nós, mais ou menos, necessitar ou não dessas coisas no seu curso...”. Como é possível resistir à aproximação imediata com Espinosa? Dir-se-á que d’Holbach também desenvolve extensas considerações sobre o mesmo tema, mas isso apenas confirmaria a influência do espinosismo também nele e, por outro lado, o système de la nature é muito posterior a este escrito de Deschamps. De resto, essa similitude explica a reacção violenta de Deschamps quando toma conhecimento da obra de d’Holbach, onde, a par das críticas que lhe dirige, se adivinha um profundo ressentimento. Afinal, já ele o tinha dito e disse-o melhor, pensa ele, sem que merecesse a fama do outro. Por outro lado, há que acrescentar que o pensamento de d’Holbach é mais determinista, com uma tonalidade tal que os críticos seus contemporâneos o apelidaram de «fatalista», como se pode concluir da novela de Diderot, Jacques, le Fataliste.

André Robinet, o autor, como já se referiu, de uma obra sobre Dom Deschamps publicada em 1974, escreve as seguintes palavras :”Se um cogito materialista foi algum dia enunciado, foi bem nestas páginas de Deschamps”, a propósito de uma teoria do conhecimento exposta por Deschamps, por exemplo neste passo:” Ter a sensação de uma coisa, é ser esta coisa proporcionalmente à sensação que dela se tem, de modo que vê-la mais ou vê-la menos, julgá-la mais ou julgá-la menos, é ser mais ou menos ela e nada mais”, que já havíamos citado acima. Tem inteiramente razão o ilustre investigador especialista em Malebranche, pois trata-se efectivamente de uma teoria gnosiológica, etapa de qualquer sistema que se preze. E é esta, em concreto, uma teoria perfeitamente coerente com a arquitectura do sistema deschampsiano, sem que nada tenha que ver com a teoria cartesiana. Apenas nos atrevíamos a acrescentar ao douto professor de filosofia, que esta concepção sobre a origem natureza das ideias, remete-nos para Espinosa, e parecem-nos maiores as semelhanças do que as diferenças.

Assim é que Espinosa submete o corpo à “ratio” de movimento e repouso, a morte resulta de uma alteração dessa “ratio”( à qual Deschamps denomina do “mais” e “menos”). O corpo existe no tempo, na duração, a mente exprime o corpo, sem ele nada seria. A Natureza é encarada como um corpo, corpo de todos os corpos, Indivíduo de todos os indivíduos que nele se unem em vida e dele se separam, apenas relativamente, na morte. É pelo corpo que alcançamos o eu, ou as diversas formas, mais conscientes ou menos, de autoconsciência. Pelo corpo percepcionamos, ou somos afectados, pelos outros corpos. A dimensão corpórea é o primeiro degrau de acesso ao real. Contudo, as ideias não se originam exclusivamente, e todas, a partir das sensações, pois que intervém a linguagem (os signos), a memória, a imaginação, até alcançarmos o degrau do conhecimento intuitivo ao qual não se chega por via empírica. Cada corpo e todas as demais coisas só ganham sentido vistas como partes de um Todo. “É o grau de integração cósmica que distingue os corpos”, explica-nos Maria Luísa R. Ferreira

 

 

 

«É este sentido cósmico de simbiose da parte com o Todo que torna Espinosa tão próximo dos problemas ecológicos contemporâneos, sendo o seu pensamento por vezes tomado como possível fundamentação dos mesmos.» 

O pensamento de dom Deschamps suscita-nos as mesmas considerações. O sistema espinosano pode ser, eventualmente, o sistema de uma filósofo «embriegado de Deus», como o classificou Novalis, e não de de um materialista ateu. O neo-espinosista do século seguinte, dom Deschamps, foi integralmente autor de um sistema materialista e ateu. Um materialista mais congruente e consequente –atrevemo-nos a dizer: mais moderno – que o materialismo do chefe-de-fila dos materialistas, d’Holbach. A harmonia cósmica que anunciou é bastante mais apelativa aos leitores do nosso tempo, que a harmonia do «grande todo» d’holbachiano. Que fonte os inspirou a ambos e a Diderot, para crerem em tal mundivisão? Fontes diversas, sem dúvida, uma atmosfera cultural impregnada de valores naturalistas, uma ideia de Natureza sem deus, toda ela generosa e pródiga, simultaneamente geradora e destruidora; porém, nessa atmosfera, nesse ar do tempo, nesse panteísmo que se insinuava nas élites bem-pensantes, a fonte primeva foi o espinosismo.

Certamente que muitos extrairam argumentos da filosofia da natureza de Espinosa, sem que quizessem, alguma vez, romper com a crença em Deus; foram os deístas; não é menos certo que o «materialismo vitalista», alimentado por argumentos espinosistas, resultou em ateísmo nos casos de Diderot e outros. Certamente que o carácter individualista do pensamento de Espinosa, e entendemos com esta expressão tão ambígua, a defesa de pensamento dos indivíduos, foi «arma de guerra» de arautos do liberalismo, teoria que em muitos casos se confunde com os interesses da Burguesia ascendente. Mas não é menos verdade que a reivindicação espinosana das liberdades individuais contra os Poderes (políticos, religiosos), podia ser encaminhado para a crítica de qualquer forma de Estado político institucionalizado, regido por normas e leis, a bem dizer soberano. Foi precisamente este o caminho que dom Deschamps percorreu, como iremos constatar na segunda parte desta dissertação. Porque «não é de maneira nenhuma a moral, é a política que constitui o fundo dos nossos costumes»

Daí que os cadernos que se intitulam »Observações Morais» constituem um autêntico Tratado Político. Um projecto de reforma que não se apresenta como mera hipótese de um diletante, pois que resulta como necessidade (lógica, ontológica e gnosiológica) de um articulado de princípios e postulados intuídos pela razão.

  Certamente que o par contraditório –Le Tout e Tout – não corresponde às definições espinosanas da substância única e unívoca; no entanto, a tese deschampsiana de que «não existe nada de negativo na natureza», corresponde a uma ideia central do pensamento de Espinosa.

  Não é menos certo que não encontramos nos textos de dom Deschamps o termo tão vincadamente espinosano de «conatus», nem uma definição que se aproxime desse impulso vital que explica que «Cada coisa enquanto está em seu poder esforça-se por perseverar no seu ser»; no entanto, sendo que «Numa perspectiva física, o «conatus» define-se por uma certa proporção de repouso e movimento», como não aproximar desta ideia a exposição que fizémos da teoria deschampsiana do «repouso e movimento»?

Em suma: nunca esteve nos nossos propósitos apresentar dom  como um neo-espinosista que perseguiu, em jeito de aluno sem ideias próprias, as definições e os axiomas de Bento Espinosa. Procurámos demonstrar, isso sim, a presença luminosa do ilustre filho de judeus portugueses tanto nos Philosophes materialistas, como, muito em particular, num monge filósofo, ateu e materialista, desconhecido do público português. E não se poderia fornecer melhor exemplo de filosofia enquanto esforço de evolução e superação, dizendo melhor: de integração e superação, porque como advertia I. Kant,« [De mim] não aprendereis pensamentos para repetir, mas antes como pensar».

 

 

Julgamos nós que encontrámos sobejos indícios da forte presença do espinosismo no pensamento deschampsiano sobre a Natureza, a interligação dos corpos, a impossiblidade de uma alma separada do corpo e imortal, da rejeição da falsa crença num eu sem mediações, e de uma natureza humana que transcende tanto o corpo vital como as relações sociais; pelo contrário, a cosmovisão deuma humanidade integrada no todo, que obriga-nos a conhecer a ordem deste, as suas leis endógenas, e nos aconselh a viver em harmonia connosco e com o todo. Dom Deschamps utiliza abundantemente o termo «parte(s)», que pareceu incomodar alguns interlocutores; a verdade é que Espinosa utilizou esse termo, e basta citá-lo uma vez:« Padecemos enquanto somos uma parte da Natureza que não pode conceber-se por si sem as outras [partes]».«É impossível que o homem não seja uma parte da Natureza e não possa sofrer outras mudanças que não sejam as que se podem unicamente conhecer pela sua natureza e das quais é causa adequada»

 

«O Filósofo e a sua Sombra», recorde-se o título da nossa dissertação. A «Sombra» se não é, em rigor, o próprio Espinosa da ÉTICA, é, pelo menos, o espinosismo tal como chegou às mãos de dom Deschamps. Essa «sombra» foi, de resto, detectada por praticamente todos aqueles que leram obras do beneditino. Esta constatação soava como denúncia, alerta para os esbirros dos poderes político e religiosos. Era de esperar que Deschamps refutasse, tanto mais depressa quanto pudesse, o sistema de Espinosa. Assim procedeu, mas menos por receio do que pela necessidade de se afirmar com um pensamento autónomo. Pensar autónomo que, pensando do interior das teses espinosanas da substância única, «descolava» delas exactamente na medida em que julgava, com ou sem justeza, que elas encerravam uma contradição.

  É dessa Contradição que dom Deschamps arranca para a antevisão de uma sociedade igualitária. Todavia, a Existência é Tudo, é única e a mesma. O Nada, ou Infinito, recobre com o manto diáfano da eternidade um mundo todo ele material, que exprime uma ordem que transcende os desejos apaixonados da espécie humana, os seus egoísmos e as suas invejas, que apela para uma harmonia possível, necessária e desejável, perfeitamente racional, ao alcance do conhecimento humano, e capaz de extirpar de vez as raízes da melancolia.