quinta-feira, 4 de agosto de 2016

4º ENCONTRO COM A FILOSOFIA

Em finais de Setembro/inícios de Outubro realizar-se-á o 4º ENCONTRO COM A FILOSOFIA, organizado pela Comissão instaladora da Universidade Popular de Torres Vedras, sob o tema "500 anos de A Utopia", homenagem a Thomas More. Aceitam-se inscrições de palestrantes. Contacto: nozesjanptv@gmail.com

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Palestra de Ana Mouta Faria no 3º ENCONTRO COM A FILOSOFIA, realizado em 18 de Junho de 2016, em Torres Vedras



Direitos Humanos nas sociedades democráticas


Ana Mouta Faria (CIES – ISCTE/IUL, Lisboa)



            É com muito prazer que participo neste Encontro com a Filosofia; quero começar por agradecer a proposta que me foi feita para integrar o debate de hoje acerca das ameaças e desafios que se colocam na atualidade às sociedades democráticas. Sinto-me honrada pelo convite para fazer o enquadramento do debate que vai ser aberto pelo Joaquim Araújo e pelo Nozes Pires, tanto mais que não sou, nem nunca fui, especialista de temas como Direitos Humanos, Cidadania e outros correlativos de uma área que há uns tempos se passou a chamar de Ciência Política e que, na verdade sempre se encaixou muito bem na Filosofia, na Filosofia Política, na Teoria Política ou, simplesmente, na Política. E também não sou filósofa! Ou seja: não sou especialista de nenhum destes campos. A minha profissão tem sido a de professora de História Contemporânea, e também a de investigadora de algumas áreas temáticas dentro deste período; é, portanto apenas com estas ‘ferramentas’ de ofício que venho participar na sessão de hoje.

            Daí, de ser a História a minha área de trabalho, o ter sugerido aos organizadores que o enquadramento a ser feito por mim começasse por uma perspetiva histórica sobre a construção da cidadania nas sociedades democráticas da atualidade. E pareceu-me que a questão dos Direitos Humanos era um bom fio condutor para abordar as da cidadania e da democracia; estas não se esgotam no tema dos Direitos Humanos, mas não existem sem direitos humanos; de modo que estes conceitos passaram a equivaler-se, nos nossos dias, no discurso corrente.
            Em concreto, que significa abordar o tema em perspetiva histórica?
            Significa, antes do mais, situá-lo no tempo. É por isso que quero lembrar que estes temas, tal como se colocam no nosso dia-a-dia, marcam o nascimento da Época Contemporânea – porque se geram, desenvolvem e estruturam com a chamada Dupla Revolução (as mudanças que decorreram da Revolução Industrial britânica e da Revolução Francesa de 1789), cujos efeitos “cruzados” (interdependentes) mudaram radicalmente a caraterização das sociedades implantadas no espaço euro-americano, ao longo dos cerca de 200 anos seguintes, conduzindo diretamente ao mundo que hoje conhecemos.

            Neste lapso de tempo, o lugar dos indivíduos na sociedade transforma-se profundamente:
- na relação destes com o poder: deixámos de ser, antes de tudo, súbditos de um poder soberano, de autoridade inquestionável e passámos a cidadãos de comunidades (nações) ligados por um acordo coletivo, de um pacto social em torno de um conjunto de princípios livremente aceites por todos;
- na relação dos indivíduos uns com os outros, melhor dizendo, das relações entre classes sociais, pois que a pertença a cada uma delas deixa de ser pré-determinada pelo nascimento, existindo uma igualdade de todos perante a lei; e nas relações entre maiorias e ‘minorias’.

            Nesta transformação, os Direitos Humanos começaram por ser o núcleo duro que definia os direitos, liberdades e garantias de todos os indivíduos, a partir de agora cidadãos.                     
            Esta ideia - de que todos os membros de uma sociedade possuem um conjunto de atributos dos quais não podem ser desapossados por nenhuma espécie de poder; que são, por assim dizer, inatos à condição humana e por isso mesmo cada  indivíduo deles tem a convição a partir da sua consciência íntima, - que é aquele lugar de nós próprios onde conseguimos distinguir entre o que está certo e o que está errado, que se exprime no conceito de direitos naturais, ou “lei escrita (por Deus) no coração dos homens e, por isso, reconhecida pela razão”, que se antepunha às leis impostas por qualquer poder externo - esta ideia, dizia, se é na época contemporânea que vai ficar consagrada, até se transformar numa ‘imagem de marca’ da própria contemporaneidade, é, por outro lado, o resultado duma intensa discussão filosófica entre diferentes correntes que se exprimem na Europa a partir do século XVII, e depois no continente americano .

            Antecedentes
            Naturalmente, há muitíssimos autores que procuram situar em épocas mais remotas, a ideia de que a pessoa humana é dotada de direitos que o poder não pode ignorar; afinal, sociedades que reconhecem aos seus membros, ou a uma parte deles, garantias que o poder político não pode ultrapassar, encontram-se e conhecêmo-las desde a Antiguidade Pré-clássica vivida no Próximo Oriente à Antiguidade Greco-Romana, ou aos tempos medievais marcados pelo cristianismo, religião em que a dignidade do ser humano lhe advinha da condição de filho de Deus, e por isso igual – como irmão – a todos os outros seres humanos.  
            Embora interessante, este é um tema que já tem relação distante com o debate que aqui se irá fazer, o qual visa pensar o presente e o futuro, na medida em que – isto é como raciocina a cabeça do historiador – estes são condicionados ou desenhados pelo passado próximo ou seja, da época em que o nosso presente se insere.

            Caminho percorrido
            O que já me parece pertinente para a nossa discussão é ter em conta o percurso que os Direitos Humanos fizeram dentro da contemporaneidade; como se consagraram no funcionamento das sociedades. Percurso que eu dividiria em duas fases distintas:
    - séc. XIX e início do séc. XX – em que ocorre a adopção de um código “básico” de Direitos, Liberdades e Garantias dentro dos diferentes Estados nacionais – transformando-se na questão nuclear de uma legislação fundamental de cada nação; esta legislação fundamental (o tal pacto social) ficou em geral consagrada em documentos constitucionais. E, em teoria, nenhuma outra legislação pode contrariar os princípios constitucionais porque fica ferida de morte (inconstitucionalidade).
            Os países do continente europeu e dos continentes norte e sul americano foram-nos aprovando à medida que derrubavam, no caso dos primeiros, os sistemas políticos absolutistas de Antigo Regime  e os últimos o domínio colonial das potências europeias.
    - a segunda fase começa com o fim da segunda guerra mundial e carateriza-se pelo facto de que os Direitos Humanos deixam de estar apenas consagrados no quadro jurídico interno de cada nação, e passam, através de convenções e tratados diplomáticos, ao ordenamento jurídico internacional, ao direito que regula as relações internacionais. O que virá significar: i) que há uma codificação ‘mínima’ que é reconhecida por todos os Estados que querem ter assento nos organismos internacionais como a ONU, independentemente de tradições culturais específicas nessa matéria, desde que reconheçam a Carta das Nações Unidas, aprovada em 1945;       ii) que os organismos internacionais passam a ter uma palavra a dizer em relação aos Estados que desrespeitam os Direitos Humanos – são fonte do chamado direito de ingerência, cujos limites são uma questão muito complexa e melindrosa (que podemos aprofundar, se quiserem).

            Queria voltar um pouco atrás, à primeira fase para sublinhar, e detalhar o modo como esta nova condição social do ser humano se foi instituindo, através do derrube, no decurso do séc. XIX, dos sistemas políticos absolutistas e coloniais; o que eu não referi atrás foi o facto de esse derrube ter ocorrido, quase sempre por via revolucionária. – a tal ponto que ao período entre 1789 e1848 se passou a chamar a Era das Revoluções.

¤ A primeira consagração do conceito de direitos individuais ocorre num texto anticolonial, a chamada Declaração do Povo de Virgínia (1776, 12/Junho[1]) e vai logo influenciar, pela mão de Thomas Jefferson, a Declaração Americana da Independência (1776, 4/Julho), da qual constavam os direitos naturais do ser humano que o poder político deve respeitar. Quais são? “o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança.” E mais: “Todas as vezes que um governo seja incapaz de preencher a finalidade [do bem comum], a maioria da comunidade tem o direito indubitável, inalienável e imprescritível de o reformar, mudar ou abolir, da maneira que julgar mais própria a proporcionar o benefício público” (origem do direito à insurreição).
            O segundo grande momento de consagração, agora na Europa ocidental ocorre, como sabem, com a Revolução Francesa de 1789, com a aprovação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que proclama que os direitos individuais e coletivos são universais, inalienáveis e sagrados. Quais são? “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Incluindo o direito à propriedade, todos são de natureza civil e política.   
            É no decurso de três vagas revolucionárias que percorrem o continente europeu e sul-americano (1820-23, 1829-34 e 1848) e também com a revolução parisiense de 1871 que estes são alargados, quer quanto ao espaço geográfico em que são reconhecidos, quer quanto ao âmbito.

            Com efeito, dos três princípios básicos da revolução francesa de 1789, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, os direitos inicialmente aprovados relacionam-se principalmente com o princípio da Liberdade. As revoluções da década de 1820 e de 1830, tendo em comum a luta contra os regimes absolutistas e pelo alargamento do espaço do liberalismo político à Europa ocidental e à América Latina, têm, no entanto, uma diferença: os revolucionários dos anos 1829-1834 reivindicam uma maior participação dos cidadãos nos sistemas políticos liberais, nomeadamente quer através do alargamento do direito de voto a maior número de indivíduos, quer da redução dos poderes régios. Mas em todos os casos, a preocupação maior é a proteção do indivíduo em relação ao Estado, fixando os limites da ação deste sempre que direitos estão em causa: fixam o que o Estado não pode fazer.

¤ Em 1848, a vaga de revoluções que ficou conhecida por Primavera dos Povos, porque se propagam ao centro e ao leste do continente europeu, em movimentos urbanos e com larga participação popular,
o inimigo passa a ser visto como de classe e as reivindicações apontam prioritariamente ao aprofundamento no sentido da Igualdade de oportunidades (sociais, educativas, de condições laborais) em nome da Democracia, procurando atenuar os aspetos mais brutais da exploração das classes trabalhadoras do novo mundo industrial; é assim que os Direitos Humanos se alargam à esfera dos direitos económicos e sociais. Estes aprofundam-se, nomeadamente na parte da Europa germânica e oriental, sendo talvez o mais importante pelos seus efeitos sociais, aquele de que decorre a extinção da servidão (que porém só virá a desaparecer da legislação russa em 1861[2]). Por outro lado, nos novos países sul-americanos saídos dos domínios coloniais espanhol e português, a abolição da escravatura dos africanos e da servidão da gleba dos nativos americanos vai fazendo um lento caminho, que dura quase até ao final do século (1888, Brasil, com a Lei Áurea que abole a escravatura).
            As experiências da Comuna de Paris de 1848 e sobretudo da de 1871 vão alargar as responsabilidades do Estado na concretização dos direitos humanos, através de uma série de medidas, governativas, que decorrem do princípio das responsabilidades do Estado para tornar efetivamemente universal (à escala nacional, entenda-se) a fruição desses direitos; trata-se do papel do Estado na concretização do princípio da Fraternidade: fixam o que o Estado está obrigado a fazer.

¤ O papel positivo do Estado na concretização dos direitos de cidadania vai aparecer reforçado em diferentes textos constitucionais do séc. XX, também eles saídos de conjunturas revolucionárias, como a Constituição Mexicana de 1917 e a Constituição alemã da república de Weimar, surgida da revolução socialista contra o império alemão de 1919. Ao mesmo tempo que continuam a alargar o seu âmbito: em primeiro lugar no campo dos direitos políticos, como o direito de voto para as mulheres, e no campo das relações laborais, com a jornada das 8 horas diárias e a integração das convenções aprovadas pela Organização Internacional do Trabalho, (recém-criada no âmbito da Sociedade das Nações). Além disso, alarga-se à área dos direitos económicos, das classes populares, ao prever a nacionalização das empresas (Weimar, art.º 145) e a participação dos trabalhadores no planeamento da economia, por meio de conselhos (idem, art.º 165). Mas, sobretudo, a direitos sociais, - direito à educação, à saúde, à proteção da família, à previdência social e outros do mesmo género, que só se efetivam através de políticas públicas, isto é, programas de ação governamental, os quais exigem dos Poderes Públicos uma redistribuirão de renda pela via tributária ou fiscal.[3]

            Esta viragem no entendimento do papel do Estado – daquilo de que este se deve abster para aquilo que deve fazer - é o resultado da necessidade de se obter consenso social sobre a forma de conter as tensões que atravessam as sociedades a partir da industrialização oitocentista e da progressiva aquisição de direitos civis e políticos por novas camadas, com a ‘entrada em cena’ das classes trabalhadoras e das classes médias urbanas. Nomeadamente no que se refere aos direitos relacionados com o trabalho (direito ao trabalho contra a precariedade, remuneração justa contra o pauperismo, direito a lazer, abrangendo descanso regular e férias, a previdência, significando seguro de doença, de  desemprego, de velhice, direito a decente habitação ou moradia), podemos dizer que os mais importantes atores dos movimentos sociais que os impuseram, no século XIX e na primeira metade do século XX foram as classes populares, urbanas, organizadas em Movimentos Operários, europeus e americanos (na dupla vertente sindical e política).

¤ Como disse no início, a partir da segunda guerra mundial entra-se numa nova fase em relação aos Direitos Humanos. Com a tomada de consciência das tragédias e das atrocidades cometidas durante o conflito, forma-se, no bloco dos países Aliados, uma aliança para estabelecer e manter a paz mundial, em torno de um texto conjunto, assinado em Junho de 1945, que é a Carta das Nações Unidas (que marca o nascimento da ONU), assente “nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas;e tendo como um dos primeiros objetivos o respeito do princípio da igualdade de direitos”(art.º1, §2). Desta organização sai, três anos depois, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que até aos nossos dias sofreu várias atualizações. Por outro lado, a área geográfica abrangida vai-se alargar enormemente, aos continentes asiático e africano, devido ao ingresso dos novos Estados independentes com a descolonização europeia e japonesa, das décadas de 1950 e 1960.
            É em articulação com as Nações Unidas que se vai aprofundar o entendimento sobre a efetivação dos Direitos Humanos, em relação a grupos específicos de pessoas – a que, há pouco, me referi como ’minorias’ – mas que, na realidade, abrange grupos que nem sempre são minoritários. Desde logo com a revisão da Convenção de Genebra (em 1949) em relação aos prisioneiros de guerra, alargando as garantias aos prisioneiros civis[4].
            Por outro lado, a atividade dos seus organismos especializados (nomeadamente OIT, UNESCO, Comité dos Direitos Humanos, Comité da Descolonização, Tribunal Penal Internacional,...) vai aprofundando o entendimento sobre os Direitos Humanos,  em relação a  grupos específicos que são vítimas de normas jurídicas e/ou de práticas sociais discriminatórias: o racismo, o trabalho infantil, a escravatura e a escravatura branca (ou tráfico de mulheres para comércio sexual), a desigualdade de género, a expulsão e extradição dos refugiados políticos ou de guerra, etc., etc. Mas o trabalho destes organismos é igualmente importante no sentido de aprofundar as responsabilidades estatais na concretização dos direitos económicos, sociais e culturais, a par de outros direitos de solidariedade, coletivos e de titularidade difusa, como o direito à paz, ao progresso, à autodeterminação dos povos, etc.[5]
            Neste período, e continuando até aos dias de hoje, o aprofundamento não depende apenas da atuação de tais organismos mas podemos dizer que esta se encontra estreitamente ligada a uma multiplicidade de novos movimentos sociais, não necessariamente voltados para a luta revolucionária, nem tendo por denominador comum a classe social, oriundos de minorias de cidadãos ligados por uma qualquer condição comum (género, raça, religião, orientação sexual), protagonizados por ativistas que lutam pela abolição de medidas legais e de atitudes coletivas que mantêm esses grupos prisioneiros de discriminações múltiplas em contradição com o princípio da Liberdade: refiro-me aos movimentos feministas, anti-racistas, LGBT (lésbicas, gays, travestis, transsexuais e transgénero), alter-globalistas e outros. Estes movimentos desenvolvem a sua ação quer no interior dos seus próprios países quer em alianças transnacionais, e articulam a sua atividade com as instituições internacionais, num forte trabalho de lóbi.

¤ Nos nossos dias (fins do século XX e século XXI), a tomada de consciência: i) dos efeitos da industrialização e da globalização na exaustão dos recursos e nas destruições ambientais, ii) das mudanças tecnológicas para a sociedade da informação/do conhecimento/..., que por sua vez geram novos grupos de excluídos (por exemplo os ‘refugiados do clima’, as vítimas de novas formas de trabalho escravo e forçado, sobretudo entre os imigrantes/refugiados económicos, o fenómeno da info-exclusão) tem desencadeado novos tipos de movimentos sociais e novos aprofundamentos da concepção dos Direitos Humanos, alargando-os aos Direitos Ambientais, ao Biodireito com a proteção do Genoma humano, ao Direito à Informação e à Inclusão. Podemos aprofundar, eventualmente no debate, esta última geração de direitos.

¤Ainda queria referir três pontos, estes essencialmente de síntese – até porque é fácil desenvolvê-los a partir da internet – antes de concluir.

            A – Ao longo do tempo, no plano jurídico, foi-se consagrando um conjunto de caraterísticas, aqui só enunciadas:
- Imprescritibilidade (sem prazo; não podem prescrever) - Inalienabilidade (não podem ser transferidasde uma para outra pessoa) - Inviolabilidade (de que resulta a possibilidade de aplicar sanções civis e criminais contra os agentes do Estado se os desrespeitarem) - Irrenunciabilidade (uma das que tem dado azo a discussões polémicas: eutanásia, suicídio, aborto) - Universalidade (sem distinção de nação, raça, sexo, credo, convição pollítica ou filosófica) - Efetividade (o que obriga o poder público a atuar, através de mecanismos coercivos para a sua concretização) - Indivisibilidade (não devem ser analisados separadamente. Ex: o direito à vida implica o direito à segurança social; os direitos civis e políticos estão em pé de igualdade com os direitos económicos ou culturais).


            B – em 1979, um funcionário internacional e professor, o checo-francês Karel Vasak (1929-2005), propôs uma tipologia ou classificação dos Direitos Humanos por gerações, em correspondência com o percurso histórico que tentei esquematizar,  que visa mostrar o seu progressivo alargamento desde o início da época contemporânea e até aos nossos dias. É uma grelha muito conhecida (atualmente ensinada nas escolas), que apenas lembro:



DH da 1ª geração
Desenvolvimento
 do princípio
 de Liberdade
 Direitos civis, políticos e liberdades clássicas:
direito à vida, à propriedade, liberdade de pensamento, expressão, crença, jurídica,
nacionalidade, participação no governo, ...


DH da 2ª geração
Desenvolvimento
 do princípio
 de Igualdade
de oportunidades

Direitos  económicos sociais e culturais:
trabalho, educação, saúde, previdência social,
habitação/moradia (bras), mínimo de subsistência


DH da 3ª geração
Desenvolvimento
 do princípio
 de Fraternidade


Direitos à solidariedade, coletivos e de titularidade difusa:
 ao ambiente equilibrado, a saudável qualidade de vida, ao progresso,
à paz, autodeterminação dos povos; outros direitos difusos e coletivos,
como dos consumidores, do ambiente, entre outras designações.

DH da 4ª geração

(creio que já não
foram formulados
por K. Vasek)
Resultantes dos avanços tecnológicos e da Declaração Universal sobre o Genoma Humano
(aprov. p/UNESCO em 1999): condições para o exercício da atividade científica,
solidariedade e cooperação estatal (nas áreas da saúde ligadas ao Genoma Humano);
Direito à inclusão digital; a questão dos OGM (organismos geneticamente modificados)

E já se fala numa 5º geração.

            C – Em matéria de Direitos Humanos há uma importante questão que agora é impossível abordar, mas que é parte estruturante da construção da cidadania nas sociedades democráticas de hoje: é a dos deveres correlatos desses direitos. Também eles são objeto de codificação jurídica, que aparece em muitas constituições pelo mundo fora (Exemplos: Constituição Brasileira, Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos e outras).

            Alguns desafios, no caminho a percorrer
             Desta ‘viagem no tempo’ ou abordagem histórica sobre a evolução dos Direitos Humanos na formação da condição cidadã nos nossos dias, que aspetos me parece importante sublinhar, para encerrar a minha exposição?

¤   Estreita relação entre movimentos sociais e Direitos Humanos: movimentos que se têm revestido de formas de ação muito diversas. Inicialmente foram quase só de tipo revolucionário, mas à medida que o liberalismo se vai tornando o quadro jurídico dos Estados Nacionais, as formas mais radicais vão coexistindo com outras, melhor adaptadas em certas conjunturas à relação de forças dentro da sociedade, e que são, em si mesmas, fruto das novas liberdades e garantias políticas, usadas por uma massa crescente de cidadãos: movimentos de protesto, de rua, de propaganda, de lóbi, e outras formas de ação direta. Por outro lado, as estruturas organizativas  deixaram de se restringir aos clubes, associações, sindicatos e partidos de classe, para abrangerem associações de defesa, comités de luta, observatórios; e as transformações tecnológicas porventura viabilizam novos tipos de ação protestatária, de formas de denúncia e de boicote com fins políticos, em que a rede será um elemento-chave.

¤   A evolução dos Direitos Humanos, no duplo sentido do aprofundamento dos direitos e do alargamento das áreas geopolíticas onde se encontram consagrados, não foi, de modo nenhum, um processo linear; pelo contrário, houve avanços e recuos, dependentes da relação de forças, primeiro no interior de cada país, hoje em dia, à escala internacional (ex: UE). Nas fases em que as classes populares estiveram na ofensiva, os Direitos Humanos alargam-se e aprofundam-se; quando a ofensiva pertence aos grupos dominantes, o seu universo restringe-se, mesmo que, muitas vezes, permaneçam no papel, ‘para ONU ver’. Alguns hoje em dia andam desaparecidos, como o direito à insurreição, ou o direito à felicidade, que só se mantém na constituição norte-americana. Como manter e defender os direitos em conjunturas em que a relação de forças é desfavorável às classes que as impuseram?

¤   Há que pensar com muita atenção no significado da expressão universais, sobretudo no plano das Relações Internacionais. Não o devemos confundir com a imposição de um modelo único de sistema político moldado nas instituições euro-americanas (ocidentais) da democracia representativa/eleitoral, pois pode haver – e há, certamente - outros modelos que sirvam melhor povos com histórias diferentes. A Carta Africana dos Direitos dos Homens e dos Povos e a Declaração Islâmica Universal dos Direitos Humanos[6] aí estão para atestar que nem todas as culturas se revêm no mesmo modelo. Este é um desafio, nomeadamente para as Organizações Não Governamentais, ou para fixar os limites do direito de ingerência.

¤   Outra questão, muito complexa mas real, é a dos custos das políticas públicas a que o Estado está obrigado para tornar efetivamente universais os Direitos Humanos. Que são cada vez mais elevados à medida dos avanços científicos e da alteração dos comportamentos demográficos (com mais população idosa, menos população ativa e maior limitação da natalidade). Nenhuma força política pode ignorar a questão - até porque marca uma linha divisória entre Esquerda e Direita - que se coloca sobretudo no longo prazo, e por isso é fácil empurrá-la para ‘debaixo do tapete’, pela impopularidade das medidas a adotar. 

¤   Por último, quero sublinhar a complexidade desta questão no contexto da sociedade do conhecimento – os avanços da ciência são tão rápidos que exigem dos cidadãos, não só consciência política e militância, mas também a assunção de que a cultura científica faz parte da bagagem do cidadão-militante.

Muito obrigada.












[1] ”Direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”
[2] Por reforma de Alexandre II; a situação de miséria da maioria dos mujiques mantém-se sem grande alteração até 1917.
[3] “A Constituição de Weimar”, artigo de Fábio Konder Comparato visto a 15/06/2016 em: http://www.dhnet.org.br/educar/redeedh/anthist/alema1919.htm
[4] Entre 1864 e 1949 são assinadas 4 convenções de Genebra. Tratados definindo as normas para as leis internacionais relativas ao Direito Humanitário internacional: direitos e deveres das pessoas, combatentes ou não, em tempo de guerra. Duas revisões: 1977 e 2005.
[5] Pactos Internacionais das NU, respectivamente, sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais e sobre os Direitos Civis e Políticos de 16/12/1966;
Convenção das NU sobre a Prevenção e Punição dos Crimes de Genocídio de 9/12/1948,
 Convenção Internacional das NU s/ a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 21/12/ 1965,
Declaração das NU s/os Direitos dos Portadores de Retardamento Mental de 20/12/1971;
Declaração das NU s/os Direitos dos Portadores de Deficiências de 9/12/1975;
Convenção das NU s/a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 18/12/1979,
 Declaração das NU s/ Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crimes e Abuso de Poder de 29/11/1985,
Convenção das NU s/os Direitos da Criança de 20/11/1989,
Normas Padrão das NU s/a Igualdade de Oportunidade para Indivíduos Portadores de Deficiências de 20/12/1993,
 Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Estocagem de Armas Bacteriológicas (Biológicas)
e Toxínicas e sua Destruição de 16/12/1972,
 a Convenção da UNESCO relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino de 16/12/1960,
[6] ambas aprovadas  em 1981, a primeira pela Organização da Unidade Africana e a segunda por um Conselho Islâmico,  baseada no direito decorrente do Corão e da Suna.