terça-feira, 3 de maio de 2016

Comunicação de António Daniel Costa (Escola Secundária de Madeira Torres, Torres Vedras)



As sociedades opacas e a liberdade de expressão.

1.      Das sociedades abertas às sociedades opacas.

O pós-modernismo de Lyotard, Lipovetsky e Vattimo apresentava um novo horizonte ontológico. Do panopticon de Bentham e da previsibilidade gnoseológica inerente à noção de Física Social assim como uma sociedade Orwelliana, transitou-se para a sociedade aberta. A pulverização das personalidades, a glorificação dos projectos individuais, lugares comuns da narrativa dos anos 80 e 90, promoveram uma sociedade permissiva e uma adaptação das instituições ao indivíduo.
Como bem disse António Guerreiro, Umberto Eco morreu e com ele parece ter terminado a terminologia pós-moderna. Possivelmente que não passou disso mesmo, de uma terminologia. Apesar de marcas predominantes de um estilo de vida, podemos designar o pós-modernismo como uma mera tendência. Se a sua principal força residiu na projecção do individual, foi nesta onde se encontrou a sua principal fraqueza, chegando-se a apelidar a época como um espécie de neo-individualismo. O enfoque exclusivo na liberdade e projecto pessoal promoveu o seu contrário, começando a surgir nas manifestações culturais, preâmbulos de uma nova ordem. Com a sua característica antecipatória, nos finais dos anos 90, começaram a surgir na 7ª arte tópicos que promoviam uma ontologia diferente. Assistiu-se a uma recuperação do génio maligno que Descartes: Matrix exemplificava bem essa matriz revolucionária assim como ao EXistenZ de Cronenberg transparecia uma espécie de monismo ôntico, sem se saber onde acaba a realidade e começa o jogo. É o preâmbulo da sociedade da suspeita pelo óbvio ocultismo do poder.
A este propósito, Daniel Innerarity em A Sociedade Invisíve[1]l, promove a ideia de uma ocultação da realidade, atribuindo-lhe a designação de Sociedade Invisível. O núcleo central das sociedades atuais está presente na falta de distinção entre ver e compreender. Ver é compreender, compreender é ver. A casa do ser está por esse motivo oculta pela própria superficialidade da imagem e do consequente afastamento da complexidade. A globalização descoordenou a possibilidade lógica da justificação, apresentando uma continuidade de desculpas. Diz Innerarity[2] que das desculpas estão ausentes os instrumentos da justificação: não há relações causais, deduções ou silogismos, mas apenas manejos oportunistas da atenção que não exigem esforço intelectual. Os OVNIS foram substituídos pelos OPNIS[3] (objectos políticos não identificados), organizações sem território, mecanismos financeiros sem dono, corpos económicos que se manifestam sem se conseguir vislumbrar causas e consequências, nem impor qualquer análise silogística. Vivemos tempos pouco propícios para a aceitabilidade da hermenêutica filosófica e, simultaneamente, nunca houve época tão interessante para o olhar perscrutador da filosofia. Como afirmou Antero, a filosofia é uma acto limitado e uma potência infinita.
Entendo a filosofia como forma de suspeita que se torna protesto. Contudo, as formas de protesto ganharam contornos muito próprios. A saída da filosofia da Ágora comportou um risco enorme para o protesto porque, de um domínio da palavra tornou-se um domínio da imagem, espaço físico e internáutico. Nas últimas décadas assistiu-se a uma tentativa de simbiose entre o protesto de rua e as convocatórias facebookianas, o que promoveu um protesto difuso e próprio do mainstream. O excessivo protesto mata o protesto, por outras palavras, as excessivas manifestações tornam a manifestação normal, a crítica cultural torna-se aceite pelo poder difuso. Se antes o poder havia sido medido pela capacidade de ser visto e de não ver, atualmente todos parecem ter essa oportunidade. As redes sociais potenciaram a possibilidade de todos serem vistos mas também de não verem, dando uma sensação, e não passa disso mesmo, de poder. Por tal motivo, a trivialidade está na ausência de trivialidade, as provocações são vulgares deixando de o ser. O que é o ortodoxo e o heterodoxo, atualmente? Mesmo as mais virtuosas transgressões são acolhidas pela cultura dominante. Como diz Innerarity, O underground foi introduzido no mainstream em virtude da ausência de blocos explicativos. As sociedades atuais funcionam como uma rede que. por isso mesmo, também é uma trama. Qual a saída, se é que a queremos?
2.      Do agir comunicacional
À opacidade comunicativa da actual sociedade, autorizada de forma não intencional pela democracia representativa que promove uma certa apatia e desdém pela política por parte de um espectro considerável da sociedade, Habermas propõe uma democracia deliberativa ou discursiva. A democracia tradicional foi abalada pela agregação de preferências e negociação de interesses individuais e a base deste acordo está no símile do mercado que reduz o debate a uma panóplia que faz confluir na avaliação entre as partes a congruência de interesses privados. Para Habermas, «a política é o meio pelo qual os cidadãos se tornam simultaneamente conscientes da sua dependência mútua e do estabelecimento de relações recíprocas, não se orientando apenas para a competência mas para o diálogo e o entendimento.» Esta noção, apesar de não ser nova – Péricles ou Locke já haviam formulado curiosas incursões a esta forma política – encaminha-se para territórios onde a linguagem ocupa uma posição decisória. Substituindo o «eu transcendental» kantiano pelo «eu linguístico» das teorias da ação, Habermas propõe uma racionalidade do agir comunicacional cujo telos será uma crítica da razão para a formação do consenso numa comunidade real de comunicação[4]. Os designados atos de fala de Searle que, por sua vez, são baseados nos atos locutórios, ilocutórios e perlocutórios de Austin, são o leit motiv da teoria da ação de Habermas. Não pretendemos aqui encetar qualquer estudo aprofundado de uma teoria pragmática da linguagem, antes salientar o cuidado que devemos ter na construção de qualquer teoria à volta da política. Só será possível qualquer escopo se a considerarmos como um produto da linguagem e da comunicação.
Habermas versa sobre as condições de possibilidade da comunicação[5]. Para tal classifica os atos ilocutórios de acordo com a sua força: constativos, expressivos e regulativos. A cada um deles, faz corresponder a concepção dos três mundos de Popper, mundo 1, mundo 2 e mundo 3, respectivamente. A cada um desses mundos corresponde a ação teleológica, dramatúrgica e comunicativa. A ação teleológica desenvolve a estratégia em consonância com o propósito que é a verdade, a segunda desenvolve-se de acordo com a veracidade e a última com a retidão. O que se pretende é um entendimento intersubjectivo para o qual é fundamental o desenvolvimento da comunicação dialógica sem coacção nem dominação da parte de um falante relativamente a um ouvinte.
3.      A política como projecto inacabado.
Como já fora focado, a política é essencialmente comunicação, procurando consensos. Por tal motivo, a democracia deliberativa parece concorrer melhor para esta noção de política. Efetivamente, a democracia deliberativa assenta sobre quatro pressupostos:
 A) a justificação das propostas apresentadas;
B) estas razões devem ser acessíveis a todos os cidadãos interessados (que possa ser entendível pelos cidadãos);
C) é um processo dinâmico (o sua justificação não é eterna);
D) visa tomar uma decisão que seja vinculativa num certo período de tempo.
E os seus principais objectivos são:
A) Visar a melhoria da qualidade das decisões colectivas.
B) Almejar o escopo de uma cidadania participativa.
C) Projectar-se na busca colectiva da melhor proposta para todos.
O processe democrático enceta, assim, uma rede de discursos a partir da ideia do que queremos ser colectivamente, negociações, promessas e compromissos, estabelecendo critérios de validade dos discursos.
4. O problema da liberdade de expressão
A democracia discursiva não só se constrói a partir da livre expressão como a exige. Atualmente, por variadíssimos factores têm surgido muitas posições, também elas livres, acerca da liberdade de expressão. Se parece ser de uma existência indelével, também é verdade que a sociedade opaca produz formas de censura subtis que, apesar de não ser uma censura física como acontecia nas instituições existentes em países totalitários, não deixa de ser censura, quer por ocultação quer, como exemplificámos, por estratégias perfeitamente intencionais. Portanto, a reflexão à volta do conceito é urgente não apenas quando surgem atentados à livre opinião vindas de credos estranhos à cultura dominante mas também dentro dessa mesma cultura, mais meandrosos.
Conhecemos as teses fundamentais de Mill acerca da liberdade de expressão em Sobre a Liberdade que se resumem da seguinte forma[6]:
a.       O argumento da infalibilidade: Todas as crenças são potenciais erros tal como podem ser potenciais verdades. O que é certo é que a certeza não significa verdade. Até há pouco tempo havia a certeza de que as mulheres não deviam possuir os mesmos direitos dos homens, o que não corresponde à verdade. Foi a liberdade de expressão que alterou este estado de coisas.
b.      O argumento do dogma morto: Quem possuir uma crença deve ser capaz de a tentar refutar, descobrindo objecções Uma tese que considere a possibilidade de se tornar viva, dignifica-se e justifica-se. Ganha valor. Afirma Mill: «O mal peculiar de silenciar a expressão de uma opinião é que isso constitui um roubo à humanidade – aos que discordam da opinião, mais ainda aos que a defendem.» Para Mill, há um ganho cognitivo indesmentível.
c.       O argumento da verdade parcial: Mesmo nas posições falsas pode haver elementos verdadeiros
Ressalvando a ideia de que Mill se coloca numa posição em que o contexto argumentativo seria o ideal, onde houve uma troca de ideias de um modo essencialmente racional, Mill apresenta argumentos muito válidos relativamente à liberdade de expressão e à própria ideia de democracia. Esta forma política tem o seu fundamento na constatação da enorme possibilidade de qualquer um de nós estar errado, assim, como qualquer instituição que exerça o poder, como é de fácil constatação. Contudo, o desenvolvimento e o surgimento das redes sociais assim como a possibilidade de todos, sem exceção, poderem dar a sua opinião noutras plataformas existentes, configurou uma nova realidade. Se anteriormente todos se aborreciam pelo facto do seu diário ter sido violado, actualmente todos querem partilhar esse diário, o que motiva interrogações, dúvidas e perplexidades. Apesar de tudo, os tempos são exigentes, o esforço intelectual é maior porque o escrutínio democrático está mais presente e é constante; as formas de comunicação possuem cada vez mais subtilezas e opacidades o que pode promover uma reflexão acerca dos limites que por vezes somos tentados impor a este novo mundo. Quem é capaz de os impor? Quem é capaz de delimitar as fronteiras da livre expressão? Convenhamos que a internet não modifica a natureza humana, pode sim amplificá-la. Tal como Mill afirmou, devemos ter a liberdade de errar, embora seja conveniente que as pessoas possuam essa mesma consciência, caso contrário somos levados a dizer que também devemos defender a liberdade de não se exprimirem.
Sejamos optimistas: Eis um tempo propício para a intelectualidade.

António Daniel Fernandes Pereira da Costa
Mafra, 9 de abril de 2016


[1] Innerarity, Daniel, A sociedade Invisível, trad. Manuel Ruas, Teorema, Lisboa, 2009.
[2] Ibidem, pág. 59 e ss.
[3] Ibidem, pág 52.
[4] Acílio Estanqueiro Rocha, «Democracia Deliberativa», in Manual de Filosofia Política, organizador João Cardoso Rosas, Almedina, Coimbra, 2008
[5] Ibidem, pág130 e ss.
[6] Nigel Warburton, Sobre a Liberdade, Filosofia Aberta, Gradiva, 2015.

Comunicação ao 2º ENCONTRO COM A FILOSOFIA- J.A. Nozes Pires



Comunicação ao 2º ENCONTRO COM A FILOSOFIA

«O Espaço Público: controlo e privatização»

Caros participantes, obrigado pela vossa presença que é um forte estímulo para continuarmos estes encontros.
Eis-nos no 2º. Do primeiro publicámos online os textos das comunicações num blogue provisório que já recebeu abundantes visitas. Encontra-se aqui ao vosso dispor o 1º Caderno com essas comunicações.
Estes Encontros constituem a primeira atividade da Universidade Popular de Torres Vedras, por ora designada Comissão Instaladora. A criação da UPTV será a realização de um sonho que acalento de há uns anos para cá. Paulatinamente, sem precipitações, iremos erguê-lo. Dentro de alguns meses esperamos formalizar a sua abertura com um evento condigno. Já têm convosco o manifesto com os seus objetivos e um programa de ações. Gostaríamos de recolher o máximo de sugestões. A sua abertura à participação de todos sem discriminações e elitismos, é para nós um princípio inflexível. Uma Universidade Popular assenta nesse pilar, ainda que apenas alguns desempenhem um papel mais ativo.
A UP intervirá no espaço público de maneira particular, sem pretender sobrepor-se ou colidir com outras instituições culturais já consolidadas neste Concelho. Procurará cooperações e complementaridades.
Intervir no espaço público, digo eu. Trata-se precisamente do tema que hoje abordamos.
O que é o Espaço Público?
Os convidados a intervir nesta tarde irão abordar a pergunta de diversos ângulos. Nenhum o poderá abordar de forma exaustiva por razões de tempo, embora não lhes falte engenho.
É que a resposta a essa pergunta abrangeria um amplo leque de aspetos.
Nesta minha comunicação, obrigando-me a dar o primeiro exemplo de brevidade, vou expor as minhas perspetivas sob a forma de tópicos. Permitiriam a discussão que, porém, vai ser difícil realizar-se dada a afluência de respostas positivas aos meus convites. Teremos todos de condensar as nossas comunicações. Os textos mais alongados serão publicados.
 I.
De uma maneira inicial e genérica espaço público é tudo que não é espaço privado, entendendo-se este, quase de maneira óbvia, o espaço da vida familiar ou puramente individual. É discreto, em certos casos uma fortaleza inexpugnável onde podem desenrolar-se os acontecimentos mais violentos e perversos que até os vizinhos ignoram. O Direito comum garante esta privacidade: é necessário um mandado para a autoridade pública penetrar e pode-se com determinados limites abater-se um intruso criminoso.
Falamos em espaço físico. Será, no entanto, físico apenas? Compreende com certeza o livre pensamento, a livre orientação filosófica, religiosa, política, sexual. Contudo, sem a livre expressão no espaço público não se realizaria, não falaríamos sequer de liberdade, embora um indivíduo se possa sentir livre desde que não se submeta. Portanto, as liberdades privadas, a sua realização, exigem o espaço público. Os direitos têm de ser garantidos e protegidos por regras ou normas comunitárias ou políticas. Quando isso não se verifica –por exemplo na ditadura que foi derrubada em 25 de Abril de 1974- os indivíduos revoltam-se contra as forças que proíbem ou obstaculizam de algum modo o exercício dos seus direitos. Todos estes casos se verificam nas lutas por um espaço público que promova e garanta os direitos de expressão efetiva. O espaço público, portanto, não é pura abstração: é o conjunto dinâmico e potencialmente conflitual de estamentos ou classes sociais e das instituições económicas, políticas e ideológicas que o controlam ou nele se digladiam. Os direitos e liberdades modernas constituem conquistas civilizacionais e históricas sob condições concretas, nas quais avulta o papel das lutas de classes. Nas doutrinas liberais distingue-se a “sociedade civil” do Estado, não se ficando a saber muito bem se a “sociedade civil” é constituída apenas pelo espaço privado (o espaço das atividades económicas por exemplo) ou também pelo espaço público. O mais verdadeiro é que o Estado intervém no espaço público, seja através do consenso, seja pela força. Qualquer classe dominante tem necessitado até hoje de um poder administrativo centralizado, um conjunto de aparelhos de coerção. O espaço público é, portanto, controlado por modos que se vão sofisticando e que dependem em primeiro lugar da corelação de forças e dos interesses dos sectores sociais que exercem a dominação. Se gozarem de força suficiente (económica, política e militar) e se os seus interesses estiverem em perigo no confronto de classes, recorrem à violência e às ditaduras; se não, utilizam dispositivos aparentemente não coercivos.
Entre esses dispositivos aquele de que vos quero falar muito brevemente é o Direito. O Direito é uma criação do império romano. Em grande parte foi esquecido na Idade das Trevas e na Idade Média. Foi ressuscitado no século XVI para se adequar às novas classes médias e aos Estados modernos. Tentativa de submeter ou organizar as sociedades à Lei, e não à tradição e à religião. Nesse afã o papel dos filósofos-juristas foi relevante. O que estava subjacente eram interesses económicos conflituantes expressos claramente como tal ou sob a moldura filosófica. As disputas teológicas que acabaram por se confrontar em guerras prolongadas que alcançaram uma dimensão bárbara e destrutiva que ainda hoje nos deve impressionar, foram expressão desses interesses em conflito. Na composição dos múltiplos adversários em confronto encontramos burgueses e aristocratas, príncipes, monarcas e chefes religiosos, ou seja, não existiram dois exércitos em presença: a burguesia e a nobreza feudal. A alta burguesia comercial competia com a alta burguesia entre países ou impérios diferentes, competia com a aristocracia feudal e com sectores da pequena e média burguesia e com os camponeses e artesãos. A nobreza dividia-se entre os que apoiavam a centralização em monarquias absolutas e os latifundiários. Os resultados que perduraram mais dois séculos avaliam-se pela correlação de forças: nuns casos monarquias absolutas que não facilitavam sempre o pleno desenvolvimento do capitalismo, noutros parlamentos poderosos com influência burguesa, como no caso inglês. E foi aqui que o Direito moderno mais depressa se constituiu. Os juristas e filósofos burgueses (refiro-me às opções de classe que os escritos deles refletiam) criaram as teorias e as normas que protegiam os interesses moventes no espaço privado face ao poder estatal na época em que não detinham o comando total. A partir da conquista deste passou-se à reorganização dos seus aparelhos constituintes, incluindo o aparelho jurídico e legislativo.[1]
Os Estados Modernos estabeleceram a separação entre o Estado e a sociedade “civil”. Dois planos de ação com diferentes finalidades e regras de funcionamento. No plano privado considera-se que os indivíduos gozam de liberdade de agir segundo sua vontade e interesse; no plano público, os indivíduos, agora cidadãos, decidem de forma coletiva sobre assuntos de interesse geral.
Se o interesse predominante na relação jurídica se referir ao particular o domínio será do Direito Privado, se for público refere-se ao Direito Público. O Direito Público é composto de normas obrigatórias para todos; o Direito privado respeita a autonomia da vontade e os interesses dos particulares. Na realidade não é tanto assim: a proteção dos direitos fundamentais é do Direito Público e não do Privado embora se referira a interesses particulares e no Direito Privado verifica-se obrigatoriedade de determinados contratos.
Esta incursão no Direito é provavelmente útil porque nos permite recordar que os termos “espaço público” e “espaço privado” exprimem realidades objetivas de natureza social que adquiriram novos conteúdos a partir do século XVI sob a influência dos grandes juristas da época que defendiam a constituição do Estado moderno, a centralização do poder nos monarcas contra os poderes tradicionais dos grandes proprietários fundiários. Juristas e alguns monarcas que compreendiam a importância das novas classes médias. Protegendo-as protegiam os grandes negócios da expensão marítima. Mais depressa ou mais devagar consoante a correlação das forças em presença, a práxis refletiu-se nas teorias jurídico-políticas e estas, logo que estabelecidas, estimularam as práticas sociais. Ou seja, não foi o Direito que materializou as novas relações sociais – relações de produção – mas o invés. O desenvolvimento da classe dos artesãos,a libertação de jornaleiros relativamente às formas de servidão nos campos, a migração de populações para as cidades sob o efeito da expropriação a que foram sujeitos, o desenvolvimento dos mercados, o fortalecimento da classe dos comerciantes, a crescente utilização do dinheiro o que conduziu ao saque do oiro e prata nas Américas, o comércio das especiarias e, em seguida, o tráfico de escravos para as plantações de açúcar, tabaco, café. Em suma, antes da Revolução Industrial do século XIX, as burguesias e o capitalismo já se encontrava firmemente implantado e, por isso mesmo, se verificou esse revolucionamento permanente das técnicas, a conversão dos artesãos e outros trabalhadores sem meios de produção em proletariado. Os filósofos da política, da economia, do direito, foram dando conta destes processos a que chamamos Modernidade. 
A separação entre os novos Estados e a sociedade civil, os interesses privados, foi um passo fundamental. À burguesia interessava esta separação, a legalidade dos seus contratos privados, o direito a constituírem negócio e a enriquecerem sem obrigações de pagamento de determinados impostos a que eram obrigados nos latifúndios e desobrigados nas cidades.
Foi a luta cada vez mais aguerrida, nalguns países muito prolongada (como sucedeu entre nós), pela conquista dos direitos civis e políticos das burguesias europeias. Direitos que exprimiam os seus interesses particulares ou privados mas que se apresentavam pelas fórmulas dos filósofos como interesses universais, interesses da Razão. Interesses da esfera privada que pouco a pouco se convertiam em interesses da esfera pública, entenda-se: que o Estado devia proteger e, se possível, deveria ele mesmo ser deles seu representante único. Da conquista de uma esfera privada (a dos negócios) passou-se para a luta pela conquista do Estado burguês.
Ora, o direito de produzir, comprar, vender, distribuir, adquirir as fontes dos recursos, desde a criação de pastos e ovelhas para a lã, das oficinas manufatureiras, até ao comércio de longo curso e aos bancos, esse direito, dizia, exigiam liberdades cívicas e políticas: liberdade de pensar de modo novo e diferente da tradição e de exprimir. E, sobretudo na fase em que a burguesia era ainda apenas a classe média, exigia a discussão livre das ideias, as técnicas da persuasão, embora estas nunca se revelaram suficientes sem o recurso à força, isto é à guerra civil.
II.
Na utopia burguesa o espaço privado era o domínio da subjetividade, do Eu, da vontade e da consciência. Algo inato ou apriorístico para as filosofias idealistas alemãs. Nas filosofias empiristas inglesas, nos fundadores do liberalismo, a perspetiva era completamente diferente: a consciência mantem-se, é claro, do domínio subjetivo , porém a mente era comparada a um papel em branco, ou um quadro preto escolar onde a experiência –as sensações e perceções- iam inscrevendo as impressões, uma espécie de tijolos das ideias. Esta diferença sempre me surpreendeu. Acaso Kant e Fichte não eram adeptos do liberalismo burguês? Eram-no e contudo o idealismo germânico não se identifica de modo algum com o empirismo e o com o utilitarismo. No caso das filosofias inglesas, que vão exercer uma profunda influência nos mais importantes filósofos do Iluminismo francês, a consciência privada, digamos assim, é, em grande parte, um produto social, isto é dos hábitos e costumes. Por conseguinte, é possível modifica-la.
Dizia eu que a subjetividade é o eixo sobre o qual rola a doutrina liberal. E tal se nota em particular em um dos seus mentores: John Stuart Mill (1806/1873). Prazer/sofrimento, felicidade/infelicidade. Um racionalismo que se tenta conjugar com sentimentos. Um bem particular, individual, que dificilmente se concilia com o bem público, fragilidade básica que sempre perseguiu o liberalismo. O útil remete-se à esfera puramente da consciência individual ou possibilita uma definição universal, um denominador comum? É a dificuldade, ou mesmo a contradição, em que se envolve a doutrina de Mill e, de maneira geral, o utilitarismo burguês. Ou resvala para o puro atomismo, individualismo quase a-social ou, pelo menos, adverso a toda a instituição estatal externa, ou é ainda possível uma moral coletiva, o tal “bem comum” ou “res publica” que pregavam os republicanos positivistas? O filósofo norte-americano John Rawls (1921/2002), numa época de menos otimismo que a de Mill, deu-se conta dessa dificuldade e tentou resolvê-la na sua célebre obra “Uma Teoria da Justiça”, donde resultou uma social-democracia mitigada à qual, segundo estudos recentes, se mostra favorável a maioria dos norte-americanos . Enfim, dessa contradição nas teorias liberais entre a esfera privada onde se movimenta o capital e o Estado social brotou, no século XIX, uma doutrina alternativa que se apresentou mais lógica, racional e consequente: o socialismo.
III.
Que importa esta deriva para o assunto que aqui nos traz? Em primeiro lugar, para reafirmar o que se sabe: o liberalismo é uma doutrina originalmente inglesa, fecundada num modo de produção a que deu resposta e justificação; em segundo lugar, o sujeito (ou a subjetividade) de que se fala aí é o sujeito burguês, ainda que apresentado como universal e, sobretudo, natural. Este sujeito corresponderia à “natureza humana”, essa ficção de David Hume e seu amigo Adam Smith. Sujeito dotado de direitos, direitos naturais. Sendo, então, naturais, como se concilia esta tese com a descrição de uma mente à partida em branco? Julgo que esta contradição nunca foi inteiramente resolvida. Convinha aos filósofos intérpretes dos interesses burgueses, a começar pelo grande John Locke, a ideia de que a experiência social nos informa e forma, para combater inatismos em que sempre se apoiou a filosofia clerical-feudal. Abria-se assim um novo caminho para legitimar a mudança social e os novos valores que a burguesia transportava. Os direitos sociais, os seus direitos. E convinha aos seguidores que os direitos fossem naturais, portanto, legítimos e inalienáveis, próprios da natureza humana. Quais direitos? Obviamente em primeiro lugar o direito à livre iniciativa de comprar força de trabalho e outros meios e, através disso, lucrar. Núcleo das liberdades económico-políticas. Esfera central da atividade privada do cidadão. Que, afinal como já vimos, se confundia – e confunde- com o Direito Público. Doutra forma não se legitimaria e se protegeria a propriedade privada dos meios de produção e, portanto, as relações de produção capitalistas. Os capitalistas detestam o Estado quando este lhes quer aplicar impostos, mas aprecia-o imenso quando os ajuda a reprimir pela força bruta ou pela Lei os motins operários. O direito de extorquir, de acumular capital e de especular com o dinheiro, é privado – o famoso direito à livre iniciativa-, no entanto evidentemente que esse direito matricial tem de ser protegido pela Constituição Política, Lei fundamental, e por uma panóplia de leis sempre em evolução e involução. A propriedade e o capital são coisas privadas, dependem apenas da ousadia, inovação e trabalho dos empreendedores como impõe a ideologia, e, ao mesmo tempo, são coisas públicas, no sentido em que se edificaram Estados para resguardo.
Essa esfera é a esfera da livre escolha que deu substância ao liberalismo até aos nossos dias. Livre escolha significa decisão inteiramente pessoal onde nenhum poder externo pode intervir. Onde se manifesta politicamente? No sufrágio. Sabemos que os sufrágios demoraram muito a tornar-se universais. Deste modo, se foi construindo gradualmente a fórmula contemporânea da legitimação dos regimes políticos através do voto universal. Nela apoia-se toda a nossa concepção de democracia. Na realidade, é o espaço onde se executam as mais brutais e ou mais sofisticadas técnicas de manipulação. Conquista civilizacional indiscutível. Todavia, os factos mostram que não bastam declarações formais de respeito pelo voto, se nos lembrarmos do regime que perdurou até ao 25 de Abril, e das experiências trágicas da América Latina, passadas e presentes. «Como o escorpião do conto, continuam cumprindo seu destino, sacrificando, em nome de sua natureza oligárquica, a democracia de que dependem.», escrevia recentemente um cronista brasileiro [2]
Espaço Público versus Espaço Privado? Dir-se-á que o Espaço Privado é do domínio público. Ou seja, domínio absoluto da política.
Uma variante dessa fórmula é a delegação do poder, isto é a representatividade. Diz-se que os regimes baseados no Direito e na separação dos poderes são representativos, o que significa que eu, cidadão da esfera privada, delego publicamente o meu poder de legislar e executar em outros. O exercício dos meus direitos privados legitima os regimes públicos. A separação da “sociedade civil” e do Estado, veio permitir que o Estado se apresente acima dos particularismos e árbitro dos conflitos mundanos. Quem conhece os grandes filósofos alemães Hegel e Marx, saberá que esta tese tipicamente hegeliana recebeu um golpe que eu considero demolidor por parte de um jovem Marx que ainda não havia completado trinta anos de idade.
Devo também acrescentar um parêntesis sobre o que disse antes a propósito da vontade livre que fundamenta a liberdade de escolha, em homenagem a uma das maiores especialistas da filosofia de Espinosa que temos o privilégio de a ter aqui connosco. Espinosa explicitou claramente uma perspetiva sobre a vontade que importaria conhecer e ter presente quando aceitamos acriticamente que possuímos naturalmente esse poder. Nascemos com uma putativa capacidade a que chamamos “livre arbítrio”? Espinosa pensava que o “livre arbítrio” é uma mera ficção. Seja como for, os iluministas abandonaram as brumas da teologia e secularizaram a fórmula: nascemos para a liberdade. Liberdade para quê? Para escolhermos um projeto de vida cujas consequências são da nossa inteira responsabilidade. Vencedores ou perdedores, eis as  traves mestras da ética liberal. Na origem uma ética humanista, confiava nas capacidades do homem em construir o seu destino e melhorá-lo consecutivamente pela técnica, pela ciência, pelo conhecimento, pelas liberdades individuais. Atualmente que resta desse humanismo individualista? O Papa Francisco já denunciou recentemente urbi et orbi a face negra deste individualismo.
Para finalizar coloco mais uma pedrinha na engrenagem. Trata-se da bem conhecida expressão “feiticismo da mercadoria”. A produção de mercadorias constitui uma relação social entre produtores, tal relação aparece aos produtores (à sociedade em geral) “como  a  relação social que existe não entre eles próprios, produtores, mas entre os produtos do seu trabalho” (Marx, O Capital). “Não em termos do trabalho nelas (nas coisas concretas) materializado.” Essa relação existe de facto, mas oculta a relação entre produtores. Há, pois, uma dicotomia entre aparência e realidade ocultada. O feitiço impregna todas as relações. A mercadoria e o dinheiro exercem essa atração quase demoníaca, porém não monstruosa nem feia, mas de aparência fascinante, que nos domina, que nos promete todas as felicidades possíveis, utopia e sonhos. Desejamos comprar, ter, exibir. Recupera e reproduz a força primitiva dos mitos, uma espécie de xamanismo moderno. “Ingerir” a mercadoria é ingerir a poção mágica, simulacros grotescos das esplendorosas aventuras de Jasão e o Tosão d´oiro. Platão está vivo na nova alegoria da Caverna. Os mitos ressurgem sob novas roupagens. Horkheimer e Adorno escreveram que “o processo de racionalização […] encontra o seu termo atual na mitologização do esclarecimento [referem-se ao Iluminismo e seu legado- N.P.] sob a forma de ciência positiva”[3]
«A burguesia, onde ascendeu ao poder, destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Rasgou sem compunção todos os variegados laços feudais que prendiam o homem aos seus superiores naturais e não deixou outro laço entre homem e homem que não o do interesse nu, o do insensível “pagamento em dinheiro”[…] Resolveu a dignidade pessoal no valor de troca, e no lugar de um sem-número de liberdades legítimas e estatuídas colocou a liberdade única, sem escrúpulos, do comércio.», lê-se no Manifesto Comunista.[4]
O Manifesto foi escrito em 1847. Nas décadas seguintes Marx descobriu e demonstrou que a burguesia produziu um poderoso mito, um poderoso véu de ocultação, um poderoso ídolo. À categoria de alienação do trabalhador descoberta na juventude acrescentou e fundamentou as categorias de reificação e de fetichismo. Pensemos nesta hipótese de trabalho: em que é que se distingue o fideísmo religioso desta nova religião a que o fetichismo deu forma e conteúdo, com os seus rituais esquizofrénicos ou histéricos, que nos comanda, que nos converte numa espécie de Zômbis circulando no espaço público, em títeres no espaço privado, todos uniformizados, com idênticas pulsões inconscientes, apetites e desejos? Fetichismos primitivos submersos pelo Iluminismo e pelo positivismo que ressurgem com nova identidade? Os novos mitos denunciados por Horkheimer e Adorno, a nova religião do capitalismo denunciada por Walter Benjamim?
O Capital que oculta a sua fonte que é a mais-valia, o trabalho abstrato (o trabalho socialmente útil) que oculta a exploração do trabalho vivo, a mercadoria que oculta a relação entre produtores concretos (isto é, pessoas), o dinheiro que se apresenta como um ídolo fantasmático e antropófago, que canibaliza todas as relações humanas: estas categorias fundamentais constituem a dinâmica do capitalismo. “A produção de valores de uso não é senão uma espécie de consequência secundária, quase um mal necessário.”[5]

O fetichismo da mercadoria, a partir do lado abstrato do trabalho e do lado abstrato do dinheiro, que Marx descobriu, oferece-nos o caminho para compreender a transformação do espaço público, a sua captura pelas forças do mercado. E vou mais longe: para se compreender como agora o próprio espaço privado foi capturado. A própria mente, essa coisa privada, foi capturada.

As posições que acabo de expor são da minha inteira responsabilidade, isto é, não responsabilizam nem estes Encontros de Filosofia, nem a Universidade Popular de Torres Vedras. Seguimos este lema: A cada um a sua verdade, e que ela a todos aproveite.
Estes Encontros com a Filosofia e a futura Universidade Popular de Torres Vedras têm como vocação exercitar o pensamento crítico no espaço público e, consequentemente, promover atitudes de resistência, de não consentimento, e colaborar modestamente, para a teoria e para a prática de alternativas emancipadoras. Portanto, devo encerrar estas meras elucubrações com a convicção de que todos juntos pelo mundo fora conseguiremos encontra-las e aplica-las conforme as condições específicas em que pensamos e agimos.

NOZES PIRES
Torres Vedras, 9 de Abril 2016








[1] «A origem da divisão entre Direito Público e Direito Privado remonta ao Direito Romano, sobretudo a partir da obra de Ulpiano (Digesto, 1.1.1.2.) no trecho: Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat, privatum, quod ad singulorum utilitatem- (O direito público diz respeito ao estado da coisa romana, à polis ou civitas, o privado à utilidade dos particulares.) A divisão também resulta da separação entre a esfera pública e a privada, do lugar da ação e do lugar do labor. In Wikipédia.
[2] Flávio Aguiar, O carnaval das traições, (a propósito do golpismo no Brasil), in Boitempo blog
[3] Adorno/Horkheimer, dialética do esclarecimento, Jorge Zahar Editor, 1985
[4] Marx-Engels, obras escolhidas, edições avante!
[5] Anselm Jaspe, O que é o fetichismo da mercadoria? E pode acabar-se com ele?- prefácio ao livrinho “Karl Marx, O Fetichismo da Mercadoria e o seu segredo”, Lisboa, Antígona, 2015