terça-feira, 28 de junho de 2016

Joaquim carlos Araújo




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III Encontros com a Filosofia em Torres Vedras – 18 de junho de 2016
(DIREITOS HUMANOS NAS SOCIEDADES DEMOCRÁTICAS)
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Democracia e Humanismo
(notas polémicas)

Nota 1.
A democracia hoje realizada é uma figura de dialética, já que se trata de um valor, de um bem que incessantemente se busca pois, é reconstruído em cada etapa para que se não desvaneça, sob a ilusão de um términus alcançado. Ela, a democracia, carece da vontade diária de todos os seres humanos implicados no seu processo de efetivação, em evidências históricas sincrónicas (condições económicas, sociais e políticas), adentro do eixo diacrónico da histórica, cuja intencionalidade se encontra sempre um pouco mais à frente, ou seja, na liberdade e, como sabemos, está só se realiza realizando-se.
A democracia social, inseparável da ideia de justiça social, cumpriu-se a partir de uma «psicose de pobreza» (como bem referiu Georges Burdeau – Universallis, 7), a que Marx não escapou, inspirado por Adam Smith, Malthus ou Ricardo, a saber, os bens consumíveis são limitados, logo há que divisar uma espécie de governo tal que, equitativamente, os reparta. O que há para uns deve haver para outros, de modo a que este jogo democrático resulte numa espécie de soma nula.
Será a pobreza algo inelutável? Pensamos que não. Todos os seres humanos possuem, naturalmente, competências mínimas para retirar da natureza o que necessitam, sem desprezar os menos capacitados ou os mais desfavorecidos pela sua condição biológica e/ou social. Quer queiramos quer não, e independentemente dos sete biliões de idiossincrasias pessoais, é esta a crença que anima todos os povos, a prosperidade. Pensamos, inclusive, ser isso a aprender com o constante recrudescimento da própria vida natural que, por si só, se impõe um constante florescimento. Problema: como transportar esta realidade natural para uma tão almejada realidade social?
A essência da democracia reside na subsunção dos seus males a partir de um ponto zero da sua evolução social: na passagem do Leviathan natural para um estado de direito - que bastas vezes mostra similarmente a sua antiga fácies de monstro. Daqui surgiriam os primeiros governos que se levantaram pela vital necessidade de segurança, de modo a que a vida económica se pudesse realizar sem o constante stresse da ameaça da força bruta dos outros. Em contrapartida assistimos, ainda e sempre, aos medonhos dramas bélicos do mundo atual, o que infelizmente mostra bem, como dissemos, que a democracia se cumpre in fieri. Juntemos-lhe, agora, por assim dizer a estrutura antropológica da colonização, que sobrevém a uma idêntica estrutura de conquista, ou a necessidade económica do imperial alargamento de território, e veremos como muitos dos hodiernos problemas socioeconómicos facilmente se esclarecem em algumas das suas principais partes – poderíamos reler a este propósito o clássico The heart of darkness, de Joseph Conrad que, em 1902, iniciou a auto consciencialização do homem colonizador moderno, no caso vertente, o europeu.
Falando dos males da democracia, e ensaiando uma breve reflexão sobre a sua etiologia filosófica, poderíamos reiterar a inevitabilidade da consciência humana de se dirigir intencionalmente a uma transcendência, quer dizer, a algo fora de si que lhe permite a própria compreensão do mundo donde faz parte. Tal inevitabilidade é condição suficiente explicativa da necessidade de um domínio exterior que a oriente, enquanto consciência pré-reflexiva ou não tética de si mesma, isto é, não sendo nada daquilo que posiciona enquanto existente, a consciência é, tão-só, o seu refletido ou, o que é o mesmo, não sabe que sabe. Esse domínio, a estranheza da realidade circundante, rapidamente se transforma em constrangimento, dada a ausência desse foco tético reflexivo. Por isso, o homem assume, acriticamente, a legitimidade do exterior como poder ou faculdade natural que o limita à partida, por exemplo, pelas forças incompreensíveis da natureza; pela sensação de mortalidade; pela soberania do mais forte; etc.
Muitas vezes se defende que todos nós necessitamos de ser mandados, exteriormente incumbidos de um objetivo, enfim, de uma autoridade. Não discordamos. Aliás, essa autoridade logo se revela na biológica característica da neotenia da nossa espécie, contrariamente a tantas outras espécies. Numa fase pré-reflexiva, e mais ou menos conscientemente, damos crédito, concedemos ascendência, autoridade, a quem nos permite a sobrevivência, a quem não nos trata mal. Numa outra fase, reflexiva, quando se sabe que se sabe portanto, concedemos autoridade a quem nos trata bem. Eis de novo a dualidade da valoração nietzcshiana, enfim, o que define o ser homem! Por conseguinte, quando o conhecimento e a razão aumentam, exigimos dos outros algo mais do que a simples sobrevivência e segurança. Reclamamos o respeito pelas nossas potências psicológicas maiores - mesmo disso não sendo conscientes... O chefe diretivo e absoluto, alguém que eventualmente favorece a sua fratria, numa espécie de corrupção tribal dos líderes, poderá dar lugar a uma autoridade outra, a do altruísmo. Só aqui começa a democracia.
Nota 2.
Torna-se interessante notar que, de acordo com nobilizado Simon Smith Kuznets, em 1971, um economista russo naturalizado estadunidense, nas sociedades pré-industriais, menos ricas, as desigualdades eram menores; com a revolução industrial e o respetivo acréscimo da riqueza e diferenciação funcional as desigualdades de rendimento aumentaram; finalmente, com a introdução de estruturas de redistribuição da riqueza e a vulgarização da educação, tais desigualdades acabaram por diminuir – ver Milanovic, Branko, The Haves and the Have-Nots. A Brief and Idiosyncratic History of Global Inequality, New York, Basic Books, 2011. O que quer dizer que as desigualdades na distribuição do rendimento variam no tempo e são influenciadas pelas políticas levadas a cabo em cada nação e não dependem, exclusivamente, como teorizou Pareto, se bem que por isso sejam condicionadas, da imutabilidade do capital detido por uma minoria da população, nomeadamente os 1% ou 2% mais ricos - como por exemplo hoje em dia, em que o rendimento dos 1,75% mais ricos do mundo equivale ao recebido pelos 77% dos mais pobres. Segundo o autor deste estudo, de facto, nos últimos 30 anos, pouco ou nada se alterou na distribuição global do rendimento, mas, embora se tenha potenciado tal assimetria, algum crescimento económico de países superpopulosos, como a China ou a Índia, vai anulando essa tendência - ver http://observatorio-das-desigualdades.cies.iscte.pt. Consultado em 12 de junho de 2016. Isto mostra que também o fator população mundial é fundamental para a discussão que aqui nos traz hoje.

Nota 3.
Não podemos ou não devemos impor, professoralmente, o modelo democrático a nenhuma sociedade. Atente-se, por exemplo, e pela negativa, no caso da profundamente antidemocrática China que não ambiciona infundir o seu modelo ao resto do mundo. Os países democráticos devem pugnar, antes, pela aplicação da universalidade dos direitos humanos.
E cabe, hoje mais do que nunca, refletir na seguinte questão: devemos continuar a falar de pessoa humana (conferir com a Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH) sem que um indivíduo possua uma renda que o retire do estado de pobreza? Tratar a pessoa humana como um fim em si mesma (parece ser esse o espírito dessa Declaração,) não é uma ideia consonante com o direito (humano) de não indigência? Não é criticar (abertamente?) a ideia de tratar os outros como meros meios, apenas para atingir a riqueza (os fins) de alguns? Esse direito não existe diretamente contemplado na DUDH!... Muitos humanistas desejam, teoricamente, uma geração de seres evoluídos (kantianos), autónomos e livres, não determinados pelo exterior (por leis, costumes, morais, etc.) nem por inclinações naturais (instintos, emoções, interesses egoístas, etc.) nem, dizemos nós… pela pobreza. Os valores consagrados na DUDH não são exclusivos desta ou daquela etnia, religião, ascendência social ou cultural. Devem ser conaturais ao homem. Do mesmo modo o valor do direito à digna existência passa também (ou passa acima de tudo?!) por um prévio influxo bruto de benefícios económicos, durante um determinado período, tão-só como consequência do banal ato de existir humanamente?
E com isto se retoma a velha questão do estado providência, melhor, do retorno ao estado providência, como defende o sobejamente conhecido professor da London School of Economics, Anthony Atkinson, com 71 anos de idade (veja-se Inequality – what can be done, Harvard University Press, 2015). Segundo o autor, a redução de desigualdades é compatível com o crescimento do desempenho económico. Para isso, propõe um imposto, sob a forma de legados e doações, baseado no montante que uma pessoa aufere ao longo da vida.
Discutimos, aqui, a nova-velha ideia de um Rendimento Mínimo Universal ou Rendimento Básico Incondicionado. Qualquer pessoa com 18 anos possuiria uma herança mínima, por assim dizer. E mais do que os filósofos são economistas que atualmente o propõem. Isto para não se alvitrar a jocosa hipótese de que se leu um filósofo qualquer e logo surgiram as ideias mais ingénuas ou desprevenidas, ou como se tratasse de um mero sonho socialista/comunista. Também não se trata de mero paternalismo inconsequente.
Milton Friedman, por exemplo - ver Capitalism and Freedom (1962) - dito de direita, assim como James Tobin, dito de esquerda, ambos economistas e laureados com o Nobel, partilham a tese de um RBI – relembrem-se as teses da introdução da taxa Tobin e o desmantelamento dos paraísos fiscais que, de acordo o célebre jornalista Ignacio Ramonet, em 2000, deveriam juntar-se ao estabelecimento de um rendimento universal incondicional para todos. Ou ainda, James Edward Meade, Nobel em 1977, em Outline of an Economic Policy for a Labor Government (1935), apresentando a tese de uma política de pré-distribuição ou “democracia de proprietários”, pretendendo uma justiça social fomentada não só pelo aumento salarial, ou mediante a participação no capital por cada cidadão, como o RBI, mas por meio de um investimento substancial na educação e formação.
Pensa-se que a origem do conceito de rendimento de cidadania, como renda para os pobres, parece ter sido iniciada por Thomas Morus  (1478-1535) – em Utopia (1516), e quem anuncia o engenho é o romanceado navegador português Rafael Hitlodeu. O filósofo e pedagogo Ludovicus Vives, ou Juan Luis Vives, defende-o em Tratado del socorro de pobres - de Subventione Pauperum (1526). E, ao longo dos séculos, entre tantos outros, também Condorcet que, no cárcere, alinhavou ainda o seu Prospectus ou o póstumo Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain (1795). Anotemos ainda a intervenção de Fourier, em La Fausse Industrie (1836) ou de John Stuart Mill, em Principles of Political Economy (1848), ou do dinâmico e célebre matemático e filósofo Bertrand Russell, no livro Roads to Freedom (1918). Poderíamos continuar a assoberbar esta lista, igualmente com o famoso John Rawls, ao defender a diluição da concentração de capital detido pelos mais ricos - ver Justice As Fairness: A Restatement, Harvard University Press (2001); com Jean-Marc Ferry, que propõe uma "renda de cidadania", ou com uma citação do filósofo alemão Eric Fromm, a saber, «o rendimento garantido não só iria estabelecer a liberdade como uma realidade e não um slogan, como iria, também, estabelecer um princípio profundamente enraizado na tradição religiosa e humanista ocidental: o homem tem o direito de viver, independentemente» - in, The Revolution of Hope: Toward a Humanized Technology (1968).

Ora, o que se defende é um Rendimento Básico que deverá ser universal (para todas as pessoas, seguindo a filosofia da Declaração Universal dos Direitos Humanos), individual (independentemente das circunstâncias da vida privada de cada um), incondicional (não dependente de qualquer obrigação cultural) e suficientemente elevado (ao nível do risco de pobreza referente aos padrões europeus). Deveríamos, assim, inverter a antiga fórmula democrática greco romana, pela qual alguém possui um rendimento, logo é cidadão, e que se mudaria para a alguém é dado um rendimento, logo é cidadão. Mas, a montante de tudo isto, defendemos uma instrução pública que prepare o jovem para usufruir do seu rendimento em prol de um geral interesse socioeconómico; uma formação de personalidades democráticas; enfim, o investimento na educação pública.

Dita o senso comum, que sempre existiram e existirão ricos e pobres e o fosso é cada vez maior. O suporte teórico ou conceptual de tal crença pode encontrar-se na conhecida Lei de Pareto: independentemente das políticas sociais e tributários de qualquer país, a distribuição da riqueza segue sempre o mesmo modelo. Com vastos conhecimentos de estatística, o célebre economista italiano nascido em França defenderia, assim, a inutilidade do esforço em distribuir equitativamente a riqueza de uma nação. Contudo, ao aceitarmos o Rendimento Básico Incondicionado (algo que hoje em dia já é motivo de referendo em alguns países), poderia a ironia da vida transportar-nos para um risível cenário futurista onde se diria (e ainda de acordo com o fatal caráter da inevitabilidade paretiana da desigualdade social!): sempre existirão ricos e mega ricos e o fosso é cada vez maior!?… No entanto, também o mesmo autor, pretendeu difundir uma teoria utilitarista do bem-estar de forma a minimizar a desigualdade social e estabelecer uma justa e altruísta medida na útil distribuição de… escassos recursos, conhecida como ótimo de Pareto, a saber, o produto é um ótimo de Pareto se e somente se nenhum agente pode conservar-se numa posição melhor sem fazer com que outro agente contraia uma posição pior, ou seja, dada uma situação A, e ao se sair dela, para que alguém ganhe alguém tem de perder, portanto, o melhor seria manter o estado ótimo de não existirem, pura e simplesmente, quaisquer trocas entre dois agentes ou situações, mantendo cada um, liminarmente, o seu estatuto económico. Mas, ao ocuparmo-nos do bem-estar absoluto de cada pessoa não nos ocupamos do bem-estar relativo entre pessoas, logo, tirar a ricos para dar a pobres não é um ótimo de Pareto, já que cada indivíduo possui uma forte auto perceção daquilo que é o seu próprio bem-estar e, de acordo com o incontornável princípio da soberania do consumidor, cada um sabe o que é melhor para si próprio e disso não deseja abdicar – reflita-se, aqui, no famoso conceito de equilíbrio de Nash: dadas as estratégias escolhidas pelos outros jogadores, nenhum jogador se arrepende das suas decisões estratégicas, o que se pode ver na análise do Dilema do Prisioneiro, de A. W. Tucker: o melhor para cada um é o não ótimo para o coletivo. Tal jogo, matemático sem dúvida, a que gostaríamos de chamar cada um sabe de si e (o) deus sabe de todos, e que podemos traduzir, de forma menos anedótica, no velhíssimo combate ‘procura do bem individual’ versus ‘procura do bem coletivo’, poderá apresentar um resto zero se o rendimento mínimo (universal, individual, incondicional e suficientemente elevado) for democraticamente, paulatinamente, implantado. Como tal, com uma combinação de estratégias económicas de modo a que nenhum jogador saia prejudicado e pelo menos um se encontre beneficiado, tornando assim sem sentido tanto o racionalismo individualista nashiano do ser humano, como as não trocas paretianas e o ótimo, na e pela sociedade, poderá inaugurar uma nova nova ordem económica internacional. Seja como for, e seja que proveito possam estas ideias alcançar, o debate já está lançado para o resto do século XXI.
Joaquim Carlos Araújo